Folha de S.Paulo

Eu grito ébano

Viúva de Luiz Melodia vasculha acervo para lançar DVD, disco e livro com raridades do cantor, que é homenagead­o em prêmio

- Rafael Gregorio

Ainda é fresca a memória de Luiz Melodia nas palavras da viúva dele, Jane Reis. Só agora, ela diz, começa a cair a ficha de que morreu há um ano, aos 66, o autor de “Vale Quanto Pesa”, que nos anos 1970 renovou a MPB ao juntar blues, soul e o samba do morro de São Carlos, no Estácio, centro carioca.

É um misto de saudades e deslumbre o que ela diz sentir ao citar o artista, com quem foi casada por 40 anos e teve um filho, Mahal Reis —Melodia também é pai de Iran, do primeiro relacionam­ento.

No período de luto, ela se recolheu na casa da mãe, na Bahia, onde foi reconforta­da. Há dois meses, no entanto, precisou remexer o acervo que o casal mantinha em um escritório, no Rio de Janeiro.

O objetivo era abastecer a 29ª edição do Prêmio da Música Brasileira, que será entregue na semana que vem e presta homenagem a Melodia.

Desse inventário vêm reminiscên­cias como o caderno em que anotou a primeira composição, quando ainda era Luiz Carlos dos Santos, filho da costureira Eurídice e do servidor público e músico Oswaldo Melodia.

Isso foi anos antes que os poetas tropicalis­tas Torquato Neto e Waly Salomão, seu amigo, o levassem do morro à zona sul carioca e o apresentas­sem a Gal Costa, que gravou sua “Pérola Negra”, em 1972.

A canção, que viraria apelido, abriu caminho para o primeiro disco, em 1973, com temas como “Farrapo Humano” e “Estácio, Holly Estácio”, a partir do qual foi recebido como uma das vozes mais marcantes da MPB.

No arquivo de Melodia, há ainda ideias gravadas no celular, dezenas de fotos de álbuns familiares e um sem número de letras e poemas inéditos.

Um deles é uma parceria do artista com o amigo Jards Macalé, que Jane compartilh­ou com este repórter. Parte do inventário também começa a chegar ao público neste mês, quando será lançado o DVD “Zerima - 40 anos de Luiz Melodia”, registro de um show há dois anos, em Niterói (RJ).

Foi a derradeira turnê do artista, acometido por um câncer na medula óssea três anos após gravar o último de seus quase 20 álbuns, “Zerima”.

Também está sendo finalizado um disco ao vivo em formato não usual —dois violões, cavaquinho e voz— que Melodia apresentou algumas vezes antes da morte, realçando sua capacidade como intérprete.

Há mais planos, como um livro reunindo poemas e “um projeto que deixou pronto” para intérprete­s, sobre os quais a viúva prefere não falar.

Outra parte do acervo, porém, vai levar mais tempo para ser acessada, porque ainda dói. “Como estava organizado, pude encarar como um trabalho técnico. O que preciso tomar coragem são os áudios de celular e os poemas.”

Das lembranças da mulher, que dele foi parceira cantando em discos e palcos, surge um retrato mais íntimo.

O ouvinte de jovem guarda e jazz, fã de Chet Baker e John Coltrane; o leitor de poesia apaixonado por Manoel de Barros, de quem virou amigo; o homem que, orgulhoso da negritude, não perdia uma edição do Troféu Raça Negra, mesmo avesso a baladas.

“Reverencia­mos um grande nome da música negra também para reforçar esse sentimento no país”, diz José Maurício Machline, idealizado­r do Prêmio da Música Brasileira.

Neste ano patrocinad­o pela Petrobras, após uma edição salva por recursos de Machline e shows sem cachê, o prêmio reforça a presença negra, desde a atriz Camila Pitanga, que divide a apresentaç­ão com a colega Debora Bloch, até a escalação musical.

O evento celebra um nome da MPB a cada edição —tradiciona­lmente, um artista vivo e, no ano seguinte, um que partiu. Em 2017, foi Ney Matogrosso. Neste ano, é Melodia quem será lembrado da cenografia ao roteiro —de Zélia Duncan—, passando pelas canções dele em vozes como as de Alcione, Zezé Motta, Fabiana Cozza, Iza e o grupo As Bahias e a Cozinha Mineira.

“O prêmio tem um conselho que escolhe o indicado. É sempre uma discussão sensível˜, diz Machline. “Djavan lançou o nome de Melodia, e seu argumento foi imbatível: ‘O Luiz morreu, mas a música dele, que é de importânci­a vital, não pode morrer junto. Não vamos deixar acontecer.’”

A decisão foi unânime.

29º Prêmio da Música Brasileira

Theatro Municipal do Rio - pça. Floriano, s/n, centro, Rio de Janeiro. Qua. (15): 21h. Ingr.: R$ 75 a

R$ 150, p/ site ingressora­pido.com. br. Transmissã­o ao vivo no canal de YouTube do prêmio (youtube.com/ premiomusi­cabr) e no Canal Brasil

 ?? Arquivo Pessoal/Divulgação ?? Trecho da inédita ‘E Você Diz’, parceria com Jards Macalé Dá pra recompor favelas Dá implodir pra brasília Para eu não ficar cabreiro E rezar o ano inteiro Pra não ter bicho de pé Rezar saúde Educação e plenitude Rogar por boa juventudeE tatuar no peito a fé Luiz Melodia em imagem sem data do baú de Jane Reis
Arquivo Pessoal/Divulgação Trecho da inédita ‘E Você Diz’, parceria com Jards Macalé Dá pra recompor favelas Dá implodir pra brasília Para eu não ficar cabreiro E rezar o ano inteiro Pra não ter bicho de pé Rezar saúde Educação e plenitude Rogar por boa juventudeE tatuar no peito a fé Luiz Melodia em imagem sem data do baú de Jane Reis

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