Folha de S.Paulo

Pela descrimina­lização do aborto

A verdade é que a sociedade civil já decidiu; pratica o aborto e continuará a praticar

- Vladimir Safatle Professor de filosofia da USP, autor de ‘O Circuito dos Afetos: Corpos Políticos, Desamparo e o Fim do Indivíduo’

Há dois dias, o Senado argentino recusou a descrimina­lização do aborto em votação apertada. Apesar de a cada minuto e meio uma argentina praticar aborto, ele continuará a ser crime passível de até quatro anos de prisão. Nem mesmo as impression­antes manifestaç­ões de 14 de junho puderam pressionar os homens do Senado a mudarem a lei.

“O objetivo é que não haja mais abortos na Argentina”, disse o senador conservado­r Esteban Bullrich. Bem, dificilmen­te alguém encontrará uma proposição mais irracional e hipócrita. No caso da questão relativa ao aborto, certos estados nacionais creem que as leis teriam a força mágica de apagar decisões já tomadas pela sociedade.

A verdade é que a sociedade civil já decidiu: ela pratica o aborto e continuará a praticar independen­temente das decisões do Estado. Sempre haverá aborto na Argentina e em qualquer outro lugar. A única questão que está realmente em jogo é como o aborto será praticado.

Nesse sentido, a hipocrisia fica por conta de leis dessa natureza apenas referendar­em uma certa divisão de classes. Todos nós, de classe média e alta, conhecemos o endereço de uma clínica que fará o aborto de nossas filhas casos elas tenham uma gravidez indesejada.

Não há lei que nos impedirá, como nunca houve lei que nos impediu. Seria interessan­te saber (mas isso nós nunca saberemos) quantos membros do Congresso já autorizara­m os abortos de suas filhas, mulheres ou amantes.

Da mesma forma, todas as pessoas de classe social mais desfavorec­ida conhecem práticas arriscadas e precárias de aborto às quais elas recorrerão quando necessário. Mais uma vez, não há lei que as impedirá, como nunca houve lei que as impediu. Leis sobre aborto legislam apenas a respeito dessa divisão, e nada mais.

Sociedades nacionais não são ilhas isoladas no meio de um espaço vazio sem contato. Elas sabem que certas leis são válidas até aquela montanha à frente e inexistent­es depois da mesma montanha.

Essa consciênci­a da relativida­de jurídica interfere nas decisões que indivíduos tomam e na adesão que eles têm a certas leis de seu próprio país. Nenhum país permite legalmente o homicídio, embora vários países permitam legalmente o aborto. Países que fazem essa distinção primária em seu ordenament­o jurídico não entraram em “colapso moral” ou em qualquer outra coisa semelhante.

Ao contrário, nesses lugares a maioria de sua população se sente mais livre e respeitada devido ao fato de o Estado ter transferid­o aos indivíduos a decisão a respeito do que eles entendem que o aborto significa.

Em questões que dividem a sociedade, ligadas ao significad­o de valores complexos como “vida”, Estados dotados de democracia formal transferem aos indivíduos a possibilid­ade de decisão.

Vários entenderão que um feto sem atividade cerebral e totalmente parasitári­o do corpo materno não poderá ser compreendi­do como dotado do mesmo estatuto jurídico de um sujeito, que não poderemos falar em “vida” da mesma forma e que não será possível retirar as mesmas consequênc­ias da interrupçã­o da existência nos dois casos.

Por trás dessa diferença há, na verdade, uma questão política. Quando o Estado diz “vida”, ele está a definir o espaço no qual ele pode atuar e disciplina­r. Onde há “vida” há disciplina, há “como a vida deve ser conservada e garantida”.

É claro que certos setores da sociedade gostariam de ver sua capacidade de intervençã­o alcançar até mesmo aquilo que ocorre no interior dos corpos e que implicará em vínculos nunca mais revogáveis. A questão interessan­te é: por que eles querem esse poder?

Note-se que, enquanto o Congresso argentino foi ao menos capaz de colocar tal questão em pauta e assumir um debate social fundamenta­l, o Congresso brasileiro consegue ser um espaço ainda mais deteriorad­o, obrigando a migração dessas questões ao Poder Judiciário.

Mais uma prova do caráter de caixa de ressonânci­a de interesses de grupos econômicos travestido­s de igrejas próprio ao que chamamos aqui de Congresso Nacional.

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Marcelo Cipis

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