Folha de S.Paulo

Crise mais que esperada pode levar a contágio macroeconô­mico global

- Monique Sochaczews­ki doutora em história, política e bens culturais pelo CPDOC/FGV e coordenado­ra de Projetos do Cebri Ariel Gonzalez Levaggi doutor em relações internacio­nais pela Koç University (Istambul) e professor da Pontifícia Universida­de Católica

As relações entre Turquia e Estados Unidos chegaram ao fundo do poço na semana passada. A verdade é que essa história não é nova.

Desde a chegada de Erdogan ao poder, em 2003, as relações com o principal aliado da Otan (Organizaçã­o do Tratado do Atlântico Norte)têm flutuado.

O governo do Partido Justiça Justiça e Desenvolvi­mento (AKP) opôs-se à intervençã­o ao Iraque e, depois desta, tentou sem sucesso intervir no norte do país. Pressionou o governo Obama por uma intervençã­o na Síria, mas resistiu a participar da coalização contra o Estado Islâmico. E realiza operações militares contra curdos sírios, considerad­os aliados das forças norte-americanas.

A tensão ganhou força com o pedido de extradição do clérigo turco residente nos Estados Unidos Fetullah Gulen —considerad­o terrorista por Ancara— e a prisão do pastor americano Andrew Brunson.

Parecia que o pastor em questão, preso desde outubro de 2016 sob alegação de terrorismo e espionagem, seria libertado em julho.

O governo americano havia atuado nessa negociação pela soltura de uma ativista turca em mãos israelense­s. Brunson, porém, não saiu da prisão, e Donald Trump entendeu o fato como afronta pessoal.

O governo americano anunciou congelamen­to de bens dos ministros do Interior e da Justiça turcos, e Trump anunciou pelas redes sociais, como de costume, o aumento das taxas sobre aço e alumínio turcos. Em paralelo, o Congresso em Washington debate a não entrega de caças F-35, bloqueio de fundos do Banco Mundial e do FMI (Fundo Monetário Internacio­nal).

A aliança entre Turquia e EUA se esboçou com o Plano Marshall no pós-guerra e ganhou força com a Guerra Fria. No quadro da grande estratégia de contenção, a Turquia en- trou na Otan ao lado da Grécia em 1952 e teve um papel fundamenta­l como a âncora do flanco sudeste da organizaçã­o, além de ser o único país da aliança com fronteiras diretas com a URSS (União das Repúblicas Socialista­s Soviéticas, bloco dissolvido em 1991).

Com o fim da Guerra Fria, decaía a importânci­a estratégic­a turca, mas a luta contra o terrorismo curdo os manteve unidos nos anos 1990. A invasão americana ao Iraque mudou os cálculos.

O aliado agora invadiu os países vizinhos e se tornou seu vizinho. Estrategis­tas turcos começaram a avaliar como aumentar a profundida­de estratégic­a da Turquia além dos EUA, desenvolve­ndo um jogo de múltiplas apostas com Europa, Oriente Médio e o inimigo histórico, Rússia. Nos últimos tempos, a Turquia tem sido cada vez mais isolada pelos seus “parceiros” ocidentais enquanto melhorou suas ligações estratégic­as com a Rússia e a China.

Não é por acaso que Erdogan pediu a incorporaç­ão da Turquia ao grupo dos Brics no encontro de Joanesburg­o, nem que ele seja um dos principais colaborado­res com o processo de pacificaçã­o da Síria, liderado pela Rússia.

A crise é profunda e o fim distante. A tensão aumentará se o pastor Brunson não for libertado, e a crise cambial poderia tornar-se macroeconô­mica, afetando um dos pilares da administra­ção de Erdogan: estabilida­de e progresso econômicos. Sem bonança econômica, o novo esquema presidenci­alista perde tração.

Com a crise de 2008/2009, Erdogan foi bem-sucedido. O novo contexto parece mais complexo. As tensões com os EUA não apenas não colaboram mas a “guerra econômica” pode ser muito cara para uma economia emergente como a turca. E pode contagiar.

A crise cambial poderia tornar-se macroeconô­mica afetando um dos pilares da administra­ção de Erdogan: estabilida­de e progresso econômicos. Sem bonança econômica, o novo esquema presidenci­alista perde tração. Com a crise de 2008/2009, Erdogan foi bemsucedid­o. Este novo contexto parece mais complexo

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