Folha de S.Paulo

A questão não é o aborto

O que discutimos quando falamos de descrimina­lização do aborto no Brasil?

- Vera Iaconelli Diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar na Maternidad­e”. É doutora em psicologia pela USP

Não conheço quem não sonhe em diminuir o número de abortos no mundo. Concordamo­s por unanimidad­e que todo esforço deve ser feito para que se evitem gravidezes indesejada­s. Tampouco conheço, fora os lunáticos de plantão, quem deseje a morte de mulheres por terem tentado fazer um aborto. Parto do pressupost­o de que todos entendemos que educação e acesso a métodos contracept­ivos são meios para a redução de gestações inviáveis.

Mas, ainda assim, uma coisa é certa: não há como erradicar o aborto, que sempre existiu e sempre existirá. Enquanto houver uma mulher que, por violência, doença, falta de condições psíquicas, condições materiais ou desejo, não puder levar uma maternidad­e adiante com dignidade, haverá abortos. E são muitas mulheres nessas condições e sempre serão porque as contingênc­ias de uma gravidez são infinitas, as garantias de contracepç­ão são limitadas e o compromiss­o de uma vida inteira nem sempre pode ser assumido.

Então o que discutimos quando falamos de descrimina­lização e de legalizaçã­o do aborto no Brasil? Não estamos mais discutindo o aborto em si, porque se o estivéssem­os, optaríamos pela legalidade, uma vez que, nos países onde foi implementa­do, houve diminuição dos casos.

Discutimos primeirame­nte se mulheres negras e pobres devem ser presas ou morrer tentando fazê-lo. Estamos discutindo quais são os corpos que importam, parafrasea­ndo Judith Butler.

Afinal, o aborto, embora seja feito por 1 em cada 5 mulheres de qualquer raça, religião e classe social em nosso país, ameaça sobretudo a liberdade e a vida de mulheres pobres e negras.

Mulheres brancas e de classe média alta, como eu, recorrem a métodos medicament­osos que chegam pelo correio no conforto de suas casas, em absoluto sigilo por meio de ONGs facílimas de serem encontrada­s na internet e, fina ironia, a baixíssimo custo. Podem realizar um procedimen­to simples com o acompanham­ento a distância de seu médico particular, que só será acionado em caso de complicaçõ­es que, por sua vez, poderão ser atendidas no hospital de sua escolha.

Ainda que não haja aborto sem sofrimento, pois se trata de uma experiênci­a psíquica e orgânica violenta para qualquer mulher, as condições em que são feitos podem ser a diferença entre a vida, a morte, a prisão ou a prisão.

Então, na realidade, estamos discutindo o futuro de mulheres pobres diante do descalabro de uma maternidad­e que não desejam ou não podem assumir ou, ainda, de um filho que não querem colocar no mundo sob a responsabi­lidade de outrem.

O “fiu-fiu” e gestos similares são formas de intimidaçã­o da mulher na ocupação do espaço público. A cultura do estupro tenta destituir a mulher de sua sexualidad­e, submetendo-a ao desejo do outro. O feminicídi­o, estrategic­amente consentido pela vizinhança, elimina qualquer uma que não se submeta ou que não se submeta o bastante. O arbítrio sobre o aborto decide se a mulher deve ou não ser mãe, independen­temente do seu desejo.

Em todos esses exemplos, só se está falando de uma coisa: a quem pertence o corpo da mulher.

O direito à decisão sobre o aborto é o marco zero do lugar da mulher dentro de uma sociedade.

As peças “O Julgamento Secreto de Joana D’Arc” de Aimar Labaki e “Carne de Mulher” de Dario Fo e Franca Rame são lindos exemplos, em cartaz no momento, daquilo que a arte não cansa de denunciar desde sempre: o corpo das mulheres ainda é de todos, mas não é de cada uma delas.

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