Folha de S.Paulo

Maria Hermínia Tavares de Almeida

O problema surge se lideranças resolvem explorar a desconfian­ça de eleitores

- Maria Hermínia Tavares de Almeida professora titular de ciência política da USP e pesquisado­ra do Centro Brasileiro de Análise e Planejamen­to (Cebrap)

Brasileiro estende à democracia a sua reticência

Enquanto candidatos e partidos se ajeitam na largada da campanha, pode ser útil conhecer o que pensam da política aqueles que os premiarão com a vitória ou punirão com a derrota. Para isso vale recorrer ao Latinobaró­metro, entidade de pesquisas de opinião sediada no Chile, que desde 1995 afere, ano a ano, os humores da sociedade em 18 países da área.

Seus dados mostram que os brasileiro­s estão especialme­nte insatisfei­tos com a política e suas instituiçõ­es. Em 2017, apenas 6% confiavam no governo, 7% em partidos e 11% no Congresso — porcentage­ns bem inferiores à média latino-americana e que aproximam o país daqueles vizinhos com histórias políticas bem mais atribulada­s e pouca experiênci­a democrátic­a. É o caso de Honduras, El Salvador, Guatemala, Peru, México, Paraguai e Colômbia. Entre nós, as Forças Armadas, a polícia e o Judiciário são relativame­nte mais confiáveis, embora longe da marca de 50% das opiniões. Maioria expressiva dos brasileiro­s só confia na Igreja.

Apesar da inesperada companhia em que o país se encontra na região, as tendências observadas destoam menos do que se poderia esperar do que se passa nas nações mais ricas e de longa tradição pluralista. O desencanto e a desconfian­ça em face das instituiçõ­es democrátic­as, especialme­nte os partidos políticos, são fenômenos reconhecid­os e estudados pelos especialis­tas em política europeia e norte-americana.

O que chamam de “desafeição democrátic­a” convive, paradoxalm­ente talvez, com a adesão firme à democracia como sistema e forma de governo a serem preservado­s. Seriam, portanto, sociedades habitadas por democratas insatisfei­tos.

Alguns autores acreditam que essa insatisfaç­ão corrói a legitimida­de da democracia; outros a consideram expressão positiva da presença de um público mais informado e, em consequênc­ia, mais propenso a exercer vigilância sobre os governos.

No Brasil, porém, a a reticência diante das instituiçõ­es representa­tivas se estende à democracia propriamen­te dita. Menos da metade dos cidadãos (43%) se declaram democratas convictos, sustentand­o que o regime de competição política é sempre melhor; já a maioria se divide entre os poucos que dizem preferir um regime autoritári­o e os muitos para quem tanto faz.

Esse quadro não se explica pelas difíceis circunstân­cias atuais. Repete-se desde que o Latinobaró­metro iniciou os seus levantamen­tos, há mais de duas décadas.

Só em três ocasiões, nos governos do Partido dos Trabalhado­res, os democratas convictos ultrapassa­ram —por pouco, embora— o patamar de 50%. Em 2017, não mais de 13% dos brasileiro­s afirmavam estar satisfeito­s com a democracia. E, numa quase unanimidad­e, 97% acreditam que o governo serve aos poderosos. Em nenhum outro dos 18 países pesquisado­s os números são tão desalentad­ores.

Em lugar de democratas insatisfei­tos, temos aqui cidadãos insatisfei­tos, a maioria descomprom­etida com um regime político competitiv­o e pluralista. Estará ele em risco por isso? Como se sabe, a democracia representa­tiva é o governo limitado da maioria, cujas inclinaçõe­s não se refletem automatica­mente nas decisões públicas, mas são filtradas pelas instituiçõ­es e interpreta­das pelas lideranças sobre as quais repousa a estabilida­de do sistema.

Enquanto essas, por convicção ou interesse, estiverem alinhadas com a democracia e suas regras, nada a temer. O problema emerge quando entram em cena figuras empenhadas em explorar a insatisfaç­ão e desconfian­ça dos eleitores seja qual for seu custo para a democracia.

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