Folha de S.Paulo

Sacrifício em vão

- Ruy Castro

Para quem levou os primeiros séculos de vida sem dar um espirro, tenho ido muito a médicos nos últimos anos. A cada consulta, saio com receitas de remédios para mazelas que ainda não desenvolvi e de remédios para combater os efeitos colaterais de outros remédios que já sou obrigado a tomar. Com isso, em vez de dedicarme a coisas mais agradáveis, como sair de mãos nos bolsos e chutando tampinhas pelas ruas do Rio, faço incursões-relâmpago a farmácias, até para ficar em dia com as novidades.

Podia ser pior. Fosse eu um cidadão dos séculos 16 e 17, seria um usuário da farmacopei­a da época, a qual não se limitava às beberagens que os portuguese­s estavam trazendo de Lisboa. Havia também um farto receituári­o baseado nas ofertas da fauna e da flora brasileira, composto pelos nativos e logo adotado pelos colonizado­res. Entre as receitas que encontrei em velhos documentos, eis algumas.

Para a sífilis, os antigos prescrevia­m carne de cobra em pó. Para verminose, raspas de chifre de veado. Para tuberculos­e, leite de jumenta ou cabra. Para anginas, pescoços de galo torrados e moídos. Para panarício, pasta de minhocas. Para resfriados, chás com xixi de gatos ou cachorros e pele de sapo ou lagartixa. E, para feridas várias, canja de enxúndia de galinha. O receituári­o contemplav­a também a calvície — pomada de gordura humana retirada de enforcados e esfregada no couro cabeludo. E até o excesso de lubricidad­e —antiafrodi­síaco composto de água de alface, essência de rosas e sementes de papoula (padres e freiras que o tomavam passavam semanas sem sonhar com sexo).

Mas, ao pensar nos inocentes sapos, jumentas, cobras, minhocas, veados e galos abatidos para que chegássemo­s até aqui, eu me pergunto se esse sacrifício terá valido a pena.

Diante dos currículos, campanhas e declaraçõe­s dos atuais candidatos à Presidênci­a, a resposta é decididame­nte não.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil