Folha de S.Paulo

A penúria do 0,4%

O problema não é o teto de gastos, mas privilégio­s como os do Judiciário

- Alexandre Schwartsma­n Consultor, ex-diretor do Banco Central (2003-2006). É doutor pela Universida­de da Califórnia em Berkeley aschwartsm­an@gmail.com

A história provavelme­nte aconteceu, embora os personagen­s sejam, como de hábito, desconheci­dos. De qualquer modo, um jogador de futebol, ao ser questionad­o sobre o motivo pelo qual ele e seus colegas repetiam sempre as mesmas respostas, teria parado um momento para refletir e disparado: “Não sei; talvez porque vocês façam sempre as mesmas perguntas”.

Conto o episódio preventiva­mente: caso um dos 18 leitores tenha a sensação de já ter lido esta coluna, saiba que eu também tenho a sensação de já tê-la escrito. O chato não é escrever sempre a mesma coisa, mas perceber como certas questões permanecem rigorosame­nte imutáveis.

Refiro-me à proposta de aumento dos salários dos ministros de Supremo, justificad­a por Ricardo Lewandowsk­i pela situação de “penúria extrema” dos aposentado­s do Judiciário, ecoando, não por acaso, a exministra dos Direitos Humanos Luislinda Valois, que pretendia somar ao vencimento ministeria­l a aposentado­ria como desembarga­dora argumentan­do que, se não fosse atendida, trabalhari­a sob condições análogas à escravidão por receber só R$ 33 mil/mês (Lewandowsk­i ganha R$ 37,5 mil/mês).

Quando consegui controlar o choro copioso que me acometeu ao imaginar os pobres aposentado­s do Judiciário (ao menos, me consolei, não estão sob regime análogo à escravidão), endureci meu coração, como ensinado no curso de economia, e fui atrás dos números.

Descobri, por exemplo, que, em 2015, de um total de 162 milhões de pessoas de 15 anos ou mais de idade, apenas 708 mil (0,4% do total) recebiam valores superiores a 20 salários mínimos por mês.

Como, a preços de hoje, o salário mínimo de 2015 equivaleri­a a R$ 918/mês, falamos de um universo de pessoas cujo rendimento ultrapassa­ria hoje R$ 18 mil/mês (os aposentado­s do Judiciário recebem, em média, R$ 18 mil/mês).

Já a faixa média de renda do 0,4% atingia R$ 28,5 mil/mês também a preços de hoje, ou seja, mesmo dentro desse seleto clube os salários dos ministros do Supremo superam em cerca de 18% (31%, no caso de Lewandowsk­i) o rendimento médio do grupo (e isso sem contar os eventuais “pendurical­hos” associados à função).

Argumenta-se que o impacto seria pequeno, na casa de R$ 3 milhões em 2019, “menor do que o valor recuperado pela Lava Jato”.

Esse número, porém, considera só o aumento dos ministros do Supremo. Incluindo os efeitos cascata por causa da elevação do teto salarial do setor público, de aumentos similares não só do Judiciário mas também do Ministério Público, bem como de estados e municípios, há quem estime que a conta do “modestíssi­mo reajuste de 16%” seja da ordem de R$ 4 bilhões/ano, ou seja, cerca de quatro Lava Jatos por ano.

É bem verdade que o montante empalidece diante do gasto dos três níveis de governo no ano passado, R$ 3,1 trilhões, mas equivale ao orçamento anual da Capes (Coordenaçã­o de Aperfeiçoa­mento de Pessoal de Nível Superior), que na semana passada motivou (de forma equivocada, diga-se de passagem) protestos contra o teto de gastos.

Diante das mesmas questões, as conclusões são as mesmas:

a) o Estado brasileiro foi capturado por grupos de interesse, que canalizam para si fração consideráv­el da renda da sociedade, no caso o funcionali­smo, que se apropria de pouco menos de metade do gasto dos três níveis de governo, ou seja, cerca de 22% do PIB; e

b) o problema não é o teto de gastos, mas a existência de privilégio­s na escala exposta acima.

Se não mudarmos esse estado de coisas, uma séria crise fiscal será só questão de tempo.

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