Folha de S.Paulo

O narcisismo do homem das cavernas

No mundo mágico da direita, Bolsonaro enxerga no cabo Daciolo a própria caricatura

- Marcelo Coelho Membro do Conselho Editorial da Folha, autor dos romances ‘Jantando com Melvin’ e ‘Noturno’. É mestre em sociologia pela USP coelhofsp@uol.com.br

Figuras como o cabo Daciolo e o capitão Jair Bolsonaro podem ser ridiculari­zadas com facilidade, mas nem por isso deixo de me preocupar.

Sem dúvida o imprevisto apa

recimento do cabo, no debate

da semana passada pela TV Bandeirant­es, contribuiu para reduzir o tamanho do capitão.

Um é a lente de aumento da naniquice do outro. Ao mostrar-se menos tosco que Daciolo, Bolsonaro decepciona seus adeptos. Ao mostrar-se mais ignorante do que Bolsonaro, Daciolo faz o bolsonaris­ta passar vergonha por ser quem é.

Cresce a impressão de que Bolsonaro perde gás. É que o jogo das alianças políticas foi bem jogado pelo candidato do PSDB. Apesar de seu desempenho —desinteres­sante como sempre— no debate, Alckmin se sente otimista.

Mas a triste verdade é que, por mais extravagan­te que pareça o cabo Daciolo, e por mais estreita que seja a plataforma de Bolsonaro, há uma enorme parcela de brasileiro­s pensando como eles.

Quem já não ouviu a frase segundo a qual “bandido bom é bandido morto”? Mesmo sem

sair do meu nicho de classe

alta, ouço diariament­e frases homofóbica­s, machistas, violentas, fundamenta­listas e fascistoid­es.

A sensaboria de Alckmin não consegue refletir esse extremismo de direita, francament­e em voga no país.

Pois, se alguma coisa caracteriz­a o conservado­rismo atual, é seu horror ao eufemismo,

ao disfarce, ao bom comportame­nto.

Tendo escolhido o “politicame­nte correto” como alvo preferenci­al, a direita passou a fazer questão de ser desbocada.

Acha bonita sua primarieda­de.

É o narcisismo do homem das cavernas.

Na audiência sobre aborto promovida no STF, um defensor dos direitos do embrião apresentav­a argumentos diversos, e respeitáve­is, em favor de seu ponto de vista.

Seu desequilíb­rio se traía, contudo, quando evitava o termo “negros” em suas reflexões demográfic­as e sociológic­as. Só falava em “preto”.

Imagino a reação do direitista-padrão: “Ué, agora vão me policiar? Não é preto mesmo?”

Ei-lo que se ofende. Reafirma

seu vocabulári­o, e tem uma

razão muito forte para isso.

Ao dizer “preto” em vez de “negro”, ele acredita estar sendo mais “verdadeiro”. Sem fazer concessões aos desejos e exigências dos movimentos

sociais, o direitista pensa estar retratando a realidade “como ela é”.

Eis um dos grandes confortos intelectua­is (e uma grande fantasia) dos ultraconse­rvadores. Eles se sentem mais “verdadeiro­s” do que os adversário­s, exatamente porque estes são “utopistas”, sonham com “outra coisa”.

Só que, com isso, a extrema direita termina presa a uma espécie de mania “realista”. É o mundo do preto no branco. Do falou, está falado. Do é assim porque é assim.

Não é difícil ver até onde pode levar essa lógica de identidade­s estáveis, de fixidez vocabular e segurança essencial.

Quando tudo “é o que é”, impõe-se concluir: se Fulano é homem, então é homem. Se Fulana for mulher, então é mulher. Assunto encerrado, sem meio-termo.

Não é outra a mentalidad­e dos que acreditam no texto literal da Bíblia. Se tal coisa está escrita, então é isso o que está escrito. Não há entrelinha­s.

Do mesmo modo, “quem é

bandido sempre foi e será bandido”. Ingênuo quem pensa em

“recuperar” o criminoso. Pau que nasce torto não se conserta.

Não espanta que a extrema

direita também tenha atração pelo criacionis­mo. Macaco sempre foi e será macaco, como homem sempre foi homem,

desde o início dos tempos.

Desde que concebido, o ser

humano já é humano, argumentam os antiaborti­stas. Aqui tampouco há meio caminho. É uma visão de mundo em que nada muda, nada

deveria mudar e, se mudou,

está errada.

O horror à mudança recebe uma vestimenta retórica irresistív­el: a que diz que “o que é, é”. Nesses termos, evidenteme­nte, tudo ganha forte sabor de verdade.

Bolsonaro se olha no espelho: ele se sente autêntico, verdadeiro, igual ao que sempre foi. Sua identidade se multiplica, se reafirma e ecoa em cada desfile militar, nos homens

marchando de uniforme a um

só passo.Assim é o que tem de ser: seus olhos azuis se fixam na autossatis­fação.

Eis que... Surpresa! Um outro candidato, Daciolo, aparece! Espelho, espelho meu, haverá alguém mais direitista do que eu? O espelho responde

que sim. O reflexo se torna caricatura; o idêntico é pior do

que o original, a cópia denuncia a artificial­idade do modelo,

e a identidade entra em crise.

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André Stefanini

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