Folha de S.Paulo

A viagem de V.S. Naipaul e suas lembranças da galinha assada

- Nina Horta

Morreu V.S. Naipaul, prêmio Nobel de literatura, autor de “Uma Casa para o Senhor Biswas”. Escritor tão grande quanto ranzinza, implicante, cheio de opiniões. Não cabe num pé de página. De raízes indianas, vivia na ilha caribenha de Trinidad e Tobago, onde se plantava cana. Novo Mundo.

Queria escrever desde os 11 anos, mas não escrevia nada. Punha na sua frente um papel em branco, uma caneta com tinta e o cheiro bastava. Assim mesmo se sentia o mais capaz dos colonizado­s, aquele que abaixaria a crista dos ingleses dentro de sua própria língua, um desaforado.

Muito cedo percebeu que a literatura que a escola queria lhe enfiar pelo gogó não era a praia dele. Não sentia as suas raízes. Vivia, segundo ele, como alguém que entra no meio da sessão de um filme velho.

E achava que, para entender o filme, tinha que conhecer o mundo, de onde vinham aqueles romances, o arenque defumado, o bacalhau, o leite condensado e as sardinhas no óleo que comia.

Ganha uma bolsa para estudar inglês em Oxford e, no avião, abre seu farnel de galinha assada, bananas e laranjas. Não importava que fossem vegetarian­os, na sua família uma alface e uma galinha eram a mesma coisa.

Depois escreve ao pai, agradecend­o. “Sabem por que fico me lembrando da galinha? É porque me fez sentir quanto vocês gostavam de mim; e não podem imaginar como este sentimento é infinitame­nte triste. Eu me sinto pequeno frente a esta responsabi­lidade tão grande, a responsabi­lidade de merecer amor.”

Mas nem na Inglaterra encontra a escrita que vem do fundo. Tinha que ter uma memória, não conhecia a Índia verdadeira, só aquela aldeia colonizada. Uma Índia imaginada e uma cidadezinh­a colonial, era o que tinha.

Tentou se desvencilh­ar do passado de menino colonizado, mas tinha saudade do picles, da fruta-pão, da goiaba, e dos cigarros enfiados no quilo de açúcar que recebia dos pais.

Enfim começa a escrever. Cada livro era um novo começo. Queria falar dos semteto, da procura de uma casa, de um refúgio e dos homens e das mulheres.

Teria sido morto pelas feministas de hoje, desobedeci­a todas as regras. A Inglaterra que encontrou não era bem a que sonhava, comendo de cupons de guerra, uma calamidade e uma tragédia.

E como eram esnobes! Precisava mostrar a eles todo o potencial de um menino frágil e colonizado. Ainda ouviriam falar dele! Lutou com unhas e dentes e depois do primeiro livro não parou mais, até chegar o dia de ter uns 20 e tantos livros sobre história, viagens, ficção, política.

Pensou o Islã, namorou muito, deixou que as pessoas dessem opiniões nos seus livros de viagem, não quis mais ser engraçado. O menino franzino virara um homem.

Naipaul, desculpas, aqui é o lugar da comida, que não era seu forte. Mas, sem dúvida, cada palavra sua era essencial, não estava no livro por estar. Seu velho convencido, você foi, sim, o melhor de todos.

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