Folha de S.Paulo

Nova série do criador de ‘Os Simpsons’ testa geração Netflix

- Luciana Coelho coelho.l@uol.com.br “Desencanto” está no ar na Netflix

Quando “Os Simpsons” estrearam na Fox, em 17 de dezembro de 1989, o Muro de Berlim caíra havia 38 dias. Bush pai governava os EUA, que ainda lutariam sua primeira Guerra do Iraque, e o Brasil acabara de votar para presidente pela primeira vez em 29 anos (e eleger Fernando Collor de Mello).

A conexão com a internet era discada; a União Soviética existia; a Aids era um fantasma descontrol­ado e nos EUA a audiência da TV se dividia entre Bill Cosby e Roseanne Barr —hoje banidos, ele por estupro, ela por racismo.

Neste 17 de agosto, quando “Desencanto” entra no ar na Netflix, a estupidez de Homer permanece intacta; culturalme­nte, porém, as reviravolt­as foram tantas que nem a família amarela que acompanha duas gerações na TV deu conta de absorvê-las, algo que a polêmica sobre a adequação do personagem indoameric­ano Apu tem demonstrad­o.

Mas Matt Groening, o pai de Homer, Marge, Bart, Lisa e Maggie (e de Fry, Bender e Leela, de “Futurama”, encerrada em 2013 ) não é conformist­a .

Arisco em captar referência­s pop e devolvê-las ao mundo sob a forma de piadas geniais, o humorista precisava falar à geração que vê TV sob demanda e venera fantasias medievais que façam o mundo hoje parecer ótimo.

Groening descreve “Desencanto”, portanto, como sua tentativa de explorar um terreno desconheci­do.

A novidade, neste caso, é o fato de roteirizar toda uma temporada da série, em dez episódios de meia hora, para que contem uma só história. Com os “Simpsons” e “Futurama”, ainda que a linha temporal siga reta, cada episódio se completava sozinho.

O timing de maratona, contudo, não faz bem a Groening. Sua comédia continua a ser melhor quando consumida em doses pontuais,sob pena de overdose.

Já seu talento para inserir uma quantidade abissal de piadas e referência­s em um só frame ou diálogo estão tinindo. Não há troca de palavras em “Desencanto” que passe sem provocar ao menos um sorriso, se não gargalhada­s.

Os detalhes de cena entretém mesmo quem tem deficit de atenção, com placas de dizeres esdrúxulos que remetem a outras séries e ao noticiário (só nos três primeiros episódios as citações cobrem de Peter Pan e o “Mágico de Oz” a “Game of Thrones” e “Wild Wild Country” —o documentár­io sobre o Osho— e alusões a Melania Trump).

Pela primeira vez, sua protagonis­ta é mulher, a princesa Beanie, que ganha vida na voz desbocada da brilhante comediante Abbi Jacobson (de “Broad City”). Pouco convencion­al, ela enche a cara, desobedece o pai e adota como companhias um elfo prolixo e um demoniozin­ho fanfarrão.

Seu reino pouco tem de romântico, com príncipes que viram porcos, um rei pusilânime e feiticeiro­s cuja mágica se reduz a truques com cartas.

Ao fazer do feminismo tema central, mas destilar sarcasmo contra qualquer alvo (inclusive o politicame­nte correto de repetição), Groening mostra que sua obra é uma referência documental valiosa da cultura desta era, do quilate de “Monty Phyton” e “Seinfeld”, imune ao abismo de gerações.

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Reprodução Cena da animação “Desencanto”

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