Folha de S.Paulo

Uma diva de respeito

Morre aos 76 a rainha do soul Aretha Franklin, uma das maiores e mais versáteis vozes da história da música, que brilhou em clássicos como ‘Respect’, ‘A Natural Woman’ e ‘Chain of Fools’

- Thales de Menezes

Rainha do soul e ícone do feminismo, Aretha Franklin morre aos 76 anos

“Eu já encontrei divas na vida. A maior delas é Aretha Franklin, e ela faz você esquecer que está diante de uma. Sentada ao piano, cercada de músicos, cantando e rindo, ela é mais um dos rapazes. É pura música.”

A frase de Keith Richards é reveladora, mas é claro que a cantora americana nunca foi só um dos rapazes. Ela, que morreu nesta quinta, aos 76 anos, vítima de um câncer no pâncreas, era a última diva em atividade neste século comparável ao trio de vozes supremas Billie Holiday, Ella Fitzgerald e Nina Simone.

Mais do que a voz poderosa, Aretha teve na versatilid­ade seu grande trunfo para se tornar a artista feminina a ter mais singles nas paradas de sucesso da revista Billboard. Foram 112 gravações, 20 delas alcançando o topo do ranking americano de rhythm’n’blues.

Para completar a soma de números impression­antes, a cantora vendeu 75 milhões de discos em todo o mundo e colecionou estatuetas do Grammy. Ganhou 18 vezes o maior troféu da música, em 32 indicações entre 1968 e 2008, além de mais três prêmios honorários pelo conjunto de sua obra de 42 álbuns de estúdio, seis álbuns ao vivo e 131 singles.

A versatilid­ade fez Aretha exibir seu talento no soul, no jazz, no R&B, no rock, no funk e na música gospel, esta que foi seu primeiro ambiente sonoro. Nascida em 25 de março de 1942, em Memphis, no sul dos Estados Unidos, era filha de um pastor, C.L. Franklin. Ele a incentivou a gravar, aos 14, o seu primeiro álbum, “Songs of Faith”. Lançado em 1956, tem apenas voz e piano, tocado por ela.

Aretha gravaria mais alguns discos de gospel nas décadas seguintes, em devoção ao pai. Mas, no final dos anos 1950, revelou à família o desejo de cantar música pop. E o pai mais uma vez a ajudou, contratand­o professore­s e consultand­o executivos de gravadoras.

Sondada pela Motown, que abrigava os grandes nomes da música negra americana, ela acabou contratada pela Columbia em 1961. E a escolha foi a melhor possível, para a cantora e também para o selo. John Hammond, lendário produtor que fizera fama com Billie Holiday, cuidou das gravações dela na gravadora. Foram nove álbuns primorosos entre 1961 e 1966, mas sem um estouro de sucesso popular.

A primeira grande virada na carreira veio em 1967, quando assinou contrato com a Atlantic. Seu primeiro álbum pelo novo selo é um dos principais discos dos anos 1960 —“I Never Loved a Man the Way I Love You”. Ao lado do envolvente soul na faixa-título, esse disco trouxe “Respect”, versão imbatível que ela fez para um single de Otis Redding lançado três anos antes.

A canção, na qual ela diz que seu único pedido ao amante é que ele a respeite quando voltar para casa, passou a ser o cartão de visitas da cantora. Várias vezes regravada, ganhou dimensão de hino junto a movimentos feministas.

Além de seu maior sucesso, o álbum de estreia na Atlantic tinha também composiçõe­s da própria Aretha, como “Baby Baby Baby” e “Dr. Feelgood”, e uma magistral regravação de “A Change Is Gonna Come”, de Sam Cooke. Esta última faixa e “Respect” atestam uma das caracterís­ticas marcantes de Aretha, que é criar versões pessoais e muitas vezes superiores aos sucessos de outros artistas.

Nos anos seguintes, encadeou hits —“(You Make Me Feel Like) A Natural Woman”, “Chain of Fools”, “Think”, “Share Your Love with Me”, “Spanish Harlem” e outra regravação que liderou as paradas, “Bridge Over Troubled Water”, original de Simon & Garfunkel.

Se soul, R&B e jazz transitara­m desde cedo nos gêneros abraçados por Aretha, algumas regravaçõe­s a aproximara­m das plateias roqueiras, como “Eleanor Rigby”, dos Beatles, e “(I Can’t Get No) Satisfacti­on”, dos Rolling Stones.

No final dos anos 1970, entre a disco music e o punk rock, ela perdeu espaço na mídia e os discos não venderam tanto. Consumo intenso de cigarros e álcool se juntaram a problemas de saúde e muita luta contra a obesidade. Tudo isso prejudicav­a também sua vida fora de palcos e estúdios.

Sua guinada de volta ao sucesso só veio com mais uma demonstraç­ão da facilidade para assimilar outros gêneros e mesmo assim exibir uma personalid­ade musical potente. “Jump to It”, faixa que dá nome a seu álbum de 1982, liderou as paradas por quatro semanas seguintes. Com produção do então badalado Luther Vandross, o trabalho apontava para um som mais moderno, de balanço pop.

Aí veio a radicaliza­ção em busca do público jovem, com “Who’s Zoomin’ Who?”, de 1985. Pela primeira vez, depois de 33 álbuns na carreira, Aretha lançou um que ultrapasso­u 1 milhão de cópias vendidas. Em 1987, ela conseguiu emplacar seu último single em primeiro lugar, “I Knew You Were Waiting (For Me)”.

Esse dueto com George Michael renderia mais um Grammy para a sua estante da sala.

A partir dos anos 1990, seu ritmo de trabalho foi diminuindo a cada temporada. Influência de seu notório medo de avião. Depois de um acidente sem vítimas fatais, em 1984, ela desistiu de voar e a passou então a fazer shows só nos Estados Unidos, indo de carro.

Nos últimos 20 anos, lançou apenas seis álbuns, um deles constrange­dor: “Aretha Franklin Sings the Great Diva Classics”, de 2014. Em busca de popularida­de, regravou ali canções de supostas “divas” que estão mais para apenas esforçadas discípulas, como Alicia Keys, Adele e Chaka Khan. As regravaçõe­s ficaram muito melhores, mas não fizeram sucesso.

Em 2010 e 2013, Aretha cancelou apresentaç­ões para tratamento­s médicos, envolta em rumores sobre câncer, não confirmado­s por ela. No ano passado, voltou a ter apresentaç­ões canceladas, por ordens médicas. Sua última performanc­e foi em novembro do ano passado, em um evento para um instituto de combate à Aids fundado por Elton John.

Aretha deixa quatro filhos, de pais diferentes. O primeiro, Clarence, nasceu quando ela tinha 13 anos, em 1955. O segundo, Edward, nasceu dois anos depois. Os dois foram criados pela avó. Em 1964, ela teve o terceiro, Teddy Richards, que se tornaria guitarrist­a de sua banda de apoio. O quarto, Kecalf, veio em 1970. Leia mais na pág. C8

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James Kriegsmann/Michael Ochs Archives/Getty Images A cantora americana em retrato de 1964, em Nova York
 ?? Fred A. Sabine/Getty Images ?? Aretha Franklin durante apresentaç­ão no programa de variedades ‘The Andy Williams Show’, em 1969
Fred A. Sabine/Getty Images Aretha Franklin durante apresentaç­ão no programa de variedades ‘The Andy Williams Show’, em 1969

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