Folha de S.Paulo

Sociólogo examina mudanças do ensino superior pautadas pela economia

Sociólogo analisa dilemas das universida­des contemporâ­neas e as transforma­ções do ensino superior a partir de meados de 1970, quando a agenda acadêmica passou a guiar-se por uma lógica que tende a priorizar as reivindica­ções do campo econômico

- Por Carlos Benedito Martins Doutor em sociologia pela Universida­de de Paris, é professor titular do Departamen­to de Sociologia da Universida­de de Brasília e presidente da Sociedade Brasileira de Sociologia Ilustração Fido Nesti Ilustrador

As universida­des estão numa encruzilha­da. No plano mais imediato, contingent­e, a polarizaçã­o de opiniões existente em diversas sociedades penetra o ambiente de ensino, provoca cisões na convivênci­a entre docentes e discentes e corrói laços sociais. Grupos das mais variadas inclinaçõe­s politicas, identitári­as ou ideológica­s agem de forma pontual para estabelece­r as suas pautas específica­s e interditar o livre debate de ideias.

O fenômeno é cada vez mais notado no Brasil, mas não se restringe a este país. Com as especifici­dades de cada local, reproduz-se também nos Estados Unidos e na Europa e tem estimulado universida­des a buscar meios de preservar a coexistênc­ia de diferentes visões de mundo e o respeito pela diversidad­e de opiniões.

Num plano mais estrutural, o caminho da autonomia acadêmica se cruza com o das múltiplas demandas econômicas, políticas e de movimentos sociais. De forma legítima ou não, diversos atores procuram interferir nos rumos das universida­des para extrair delas o que cada um considera o melhor resultado.

Voltando sua atenção para o plano estrutural, este texto se concentra no surgimento de um modelo de ensino superior pautado por uma lógica que tende a priorizar reivindica­ções do campo econômico. Esse movimento, que altera de modo significat­ivo algumas das caracterís­ticas históricas com as quais as universida­des foram identifica­das ao longo de sua trajetória, tem seus esboços iniciais em meados da década de 1970 e, hoje, dissemina-se mundialmen­te.

A difusão em escala global de determinad­as caracterís­ticas desse modelo não surpreende. Nas últimas décadas do século 20, economia, política e cultura, entre outros exemplos, moveram-se para além das fronteiras nacionais. Da mesma forma, a dinâmica da universida­de contemporâ­nea não se restringe mais aos limites territoria­is de cada país. Ao lado dos sistemas nacionais de ensino superior que se estruturar­am segundo seus respectivo­s contextos regionais formou-se um novo locus de atuação: a esfera transnacio­nal.

Uma constelaçã­o de eventos contribui para isso, entre os quais a expansão mundial de instituiçõ­es, a crescente instalação de universida­des estrangeir­as em outros países, o incremento da mobilidade acadêmica internacio­nal de estudantes e pesquisado­res e a emergência de dezenas de rankings globais.

Ao mesmo tempo, cada vez mais atores em cargos decisórios na área educaciona­l de seus países circulam nesse espaço transnacio­nal; organizaçõ­es internacio­nais (Organizaçã­o para a Cooperação e Desenvolvi­mento Econômico, a OCDE; Banco Mundial; Organizaçã­o das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, a Unesco etc.) tornam-se mais presentes, e suas agendas reverberam direta ou indiretame­nte nos diversos sistemas acadêmicos nacionais; inúmeros provedores privados de ensino superior atravessam fronteiras, carregando consigo práticas movidas por um ethos comercial.

Dentro desse contexto, surgem duas novas caracterís­ticas. De modo geral, na contramão de suas histórias, tem-se priorizado nas universida­des uma dimensão utilitária, ou seja, a expectativ­a de que elas exerçam papel proeminent­e no processo de competitiv­idade econômica e tecnológic­a entre os países.

Observa-se, além disso, acentuado processo de concorrênc­ia entre instituiçõ­es educaciona­is no interior de cada país e no cenário internacio­nal, em busca de reconhecim­ento acadêmico e social, impulsiona­do por uma variedade de rankings. Cada vez mais os docentes são estimulado­s a valorizar publicaçõe­s indexadas; as atividades de ensino, que vêm deixando de constituir critério relevante em termos de prestígio, tendem a assumir papel secundário.

Não se deve perder de vista, por fim, que uma parte do ensino superior tornou-se objeto de empreendim­ento econômico lucrativo em vários países. Universida­des de prestígio internacio­nal, como Columbia, Stanford e Chicago, nos EUA, e London School of Economics, na Inglaterra, formaram um consórcio para explorar comercialm­ente a oferta de seus serviços em escala global.

Décadas atrás, as informaçõe­s disponívei­s sobre as instituiçõ­es de ensino eram divulgadas em catálogos de circulação limitada; hoje, é comum o uso ostensivo do marketing por universida­des mundo afora, reforçando a luta concorrenc­ial entre elas.

Percebe-se também que, consciente ou inconscien­temente, docentes e alunos utilizam as redes sociais de forma rotineira para promover um marketing pessoal, divulgar suas publicaçõe­s e projetar uma imagem positiva de suas realizaçõe­s, passando a atuar como verdadeiro­s microempre­sários acadêmicos de si mesmos.

É claro que, apesar de ser possível identifica­r eixos comuns aos mais diversos países, torna-se necessário ponderar que a presença efetiva desse modelo de ensino superior varia considerav­elmente de um lugar a outro, em função das especifici­dades nacionais e das relações de forças no interior de cada instituiçã­o de ensino (por exemplo, diferentes atores podem manifestar uma atitude mais positiva ou mais de recusa diante dessas transforma­ções).

Feita

a ressalva, vários autores, como Darren O’Byrne, Lawrence Busch e Steven Ward 1 , analisam essa mudança significat­iva na natureza das universida­des, com o confronto entre o modelo intelectua­l, que historicam­ente norteou a vida acadêmica, e o que vem sendo chamado de modelo gerencial (“managerial model”), que tende a privilegia­r a dimensão funcional e utilitária do saber e valorizar uma formação voltada para o mercado de trabalho.

De certa forma, o modelo intelectua­l compreende uma extensa linhagem de reflexão a respeito da identidade institucio­nal da academia: começa no século 19, com John Henry Newman, adquire maior formalizaç­ão nas ideias de Wilhelm von Humboldt (que esteve à frente da criação da Universida­de de Berlim, em 1810) e Karl Jaspers e prolonga-se hoje no pensamento de Jürgen Habermas, Zygmunt Bauman e Stephen Ball, entre outros.

Essa vertente defende a universida­de como espaço social e intelectua­l sui generis, no qual professore­s e estudantes cultivam de forma apaixonada o conhecimen­to e procuram preservá-lo como substância a priori, ou seja, como atividade voltada fundamenta­lmente para a produção do saber.

Por volta de 1900, o modelo de universida­de concebido por Humboldt —que busca articular ensino, pesquisa e liberdade acadêmica— levou a Alemanha a uma posição de liderança na pesquisa científica. Vários países adotaram alguns de seus elementos constituti­vos. A Inglaterra incorporou a pesquisa de laboratóri­o, a Universida­de de Tóquio, criada em 1877, inspirou-se em larga medida no modelo alemão, as “research universiti­es” (universida­des de pesquisa) americanas criadas no final do século 19 também se basearam na experiênci­a da universida­de alemã.

Em meados da década de 1970, o ensino superior brasileiro, estruturad­o inicialmen­te pelo modelo napoleônic­o —que priorizava institu-

ições visando tão somente a formação profission­al—, também incorporou determinad­os princípios do modelo humboldtia­no.

Um pouco antes, em 1963, há um marco do embate com o modelo de universida­de concebida por Humboldt. Naquele ano foi publicado o livro “Os Usos da Universida­de” (lançado no Brasil em 2005 pela editora da UnB), trabalho clássico de Clark Kerr, que exerceu o cargo de presidente da Universida­de da Califórnia.

O autor afirmou que, por volta da metade do século 20, delineou-se uma nova concepção de universida­de, denominada por ele de multiversi­dade: além de cuidar do ensino e da pesquisa, o ambiente acadêmico começou a assumir uma pluralidad­e de funções e um papel relevante no cresciment­o das economias nacionais. Para Kerr, o novo modelo passaria a formar especialis­tas em várias profissões e deixaria para trás a universida­de concebida por Humboldt e sua vocação de formação do intelectua­l humanista.

A partir da década de 1960, surgiram diversos trabalhos que, apesar de diferenças na abordagem, também se distanciam do modelo intelectua­l de ensino e atribuem uma dimensão instrument­al para o conhecimen­to produzido na universida­de.

Os livros “Landmarks of Tomorrow” (balizas do amanhã), de 1959, e “Uma Era de Descontinu­idade”, de 1968 (lançado no Brasil pela Zahar em 1976), de Peter Drucker, professor de administra­ção da Universida­de Harvard, introduzir­am o conceito de sociedade do conhecimen­to (“knowledge society”), hoje bastante difundido, tanto em documentos de agências internacio­nais quanto em artigos acadêmicos. Na visão do autor, as mudanças que ocorriam na sociedade pós-industrial sinalizava­m para a emergência de uma nova economia, na qual o conhecimen­to seria um fator estratégic­o no processo de produção econômica.

Publicado em 1973, “O Advento da Sociedade Pós-Industrial (lançado no Brasil em 1977 pela Cultrix), clássico de Daniel Bell, então professor de sociologia em Harvard, caminhava na mesma direção ao acentuar que o conhecimen­to gerado nas instituiçõ­es de ensino superior constituía importante fator de produção e fonte de inovação no processo econômico no contexto da sociedade pós-industrial.

Na década de 1990, quando a globalizaç­ão se tornava mais explícita, vários trabalhos reafirmara­m esse aspecto. Paul Romer, então professor de economia da Universida­de de Chicago, ressaltou que o crespara cimento econômico estava diretament­e relacionad­o à habilidade das nações de gerar novas ideias —e assinalou que a academia tinha papel crucial nesse processo.

Os trabalhos denominado­s tríplice hélice (“triple helix”), realizados por Loet Leydesdorf­f (“The Knowledge-Based Economy”, a economia baseada no conhecimen­to, de 2006) e Henry Etzkowitz, (“The Triple Helix: University, Industry, Government Innovation in Action”, a tríplice hélice: universida­de, indústria e governo: a inovação em ação, de 2008) aprofundar­am a ênfase discursiva na dimensão instrument­al do conhecimen­to ao analisar as relações possíveis entre governo, universida­de e indústria.

Num período mais recente, Kathryn Mohrman, da Universida­de Johns Hopkins, e David Baker, da Universida­de da Pensilvâni­a, cujas publicaçõe­s possuem visibilida­de no campo do ensino superior, vêm formulando o conceito de “emerging global model” (modelo global emergente) numa perspectiv­a normativa —eles prescrevem uma nova rota para as universida­des.

Mohrman e Baker sustentam que as universida­des devem atuar além de suas fronteiras nacionais, formando indivíduos capazes de agir nos quatro cantos do mundo. Indicam que elas devem privilegia­r a pesquisa, que tem caráter incrementa­l no processo econômico. Propõem que diversifiq­uem a captação de recursos pela cobrança de anuidades, por meio de parcerias com governos e corporaçõe­s e mediante a criação de empresas para explorar comercialm­ente novos produtos ou serviços de alta tecnologia. Sugerem mudanças na cultura acadêmica e no comportame­nto de dirigentes, docentes e alunos, através da prática de uma atitude gerencial e empreended­ora.

De certa forma, essas recomendaç­ões normativas apresentad­as no “emerging global model” estão presentes em agências multilater­ais, tais como as já citadas OCDE, Unesco e Banco Mundial, que possuem capilarida­de global para difundir ideias e propostas. Além de elaborarem documentos sobre ensino superior, elas promovem seminários e reuniões com atores de diversos países, tais como reitores, “policy makers” (agentes em cargos estratégic­os na administra­ção pública) e especialis­tas em ensino superior. Suas agendas de trabalho ainda incluem encontros informais que propiciam a criação de redes de intercâmbi­o entre seus participan­tes.

A despeito de eventuais diferenças quanto ao teor das recomendaç­ões, observam-se certas convergênc­ias em suas análises: expressões como “knowledge society” e “knowledge economy” são utilizadas de forma recorrente em seus documentos.

A título de ilustração, os relatórios produzidos pela OCDE e denominado­s “Universiti­es under Scrutiny” (universida­de sob escrutínio) e “The Knowledge-Based Economy” (a economia baseada em conhecimen­to) ressaltam a necessidad­e de criar uma interação mais explícita entre o conhecimen­to elaborado nas universida­des e as demandas do campo econômico.

Para tanto, as instituiçõ­es de ensino superior precisaria­m adotar novos procedimen­tos em seu cotidiano: substituir a administra­ção colegiada por uma gestão mais centraliza­da, integrada por um corpo profission­al de gestores capazes de imprimir métodos mais eficazes de comando; introduzir critérios de avaliação da produtivid­ade de seus docentes; criar produtos e disponibil­izá-los para suas sociedades etc.

Determinad­os relatórios do Banco Mundial —por exemplo, o “Higher Education: The Lessons of Experience” (ensino superior: lições da experiênci­a) e “Knowledge for Developmen­t” (conhecimen­to para o desenvolvi­mento)— reafirmam o pressupost­o de que o conhecimen­to representa um fator estratégic­o

Hoje em dia não é razoável conceber a universida­de como instituiçã­o isolada de questões econômicas, políticas e culturais relevantes

A academia, porém, não pode ser capturada por interesses sociais, econômicos, políticos e identitári­os particular­es, a não ser a custo de trair seus fundamento­s

o desenvolvi­mento econômico. As universida­des ocupam posição relevante nesse processo, na medida em que podem habilitar os países a competir numa economia cada vez mais globalizad­a.

“Toward Knowledge Societies” (em direção à sociedade do conhecimen­to), relatório elaborado pela Unesco, também destaca a importânci­a do conhecimen­to para o desenvolvi­mento no contexto da sociedade do conhecimen­to.

Por todos esses fatores, o modelo gerencial alcança forte circulação em várias partes do mundo. Na trajetória de sua construção e difusão, não apenas se afastou de princípios centrais do modelo intelectua­l como também, direta e indiretame­nte, subestimou a relevância acadêmica e social deste, sugerindo que sua concepção de universida­de possui escassa efetividad­e hoje em dia.

O modelo intelectua­l, no entanto, longe de desaparece­r, encontra-se presente em vários países. No Brasil, exerce influência acadêmica em determinad­as áreas do conhecimen­to no interior de universida­des públicas (federais e estaduais) e privadas confession­ais, entre as quais destacam as universida­des católicas.

Numa época de crescente complexida­de, em que os esquemas de pensamento­s usados no dia a dia são constantem­ente desafiados, as universida­des adquirem papel importante na orientação cultural de suas respectiva­s sociedades — quanto mais autonomia elas tiverem, quanto maior a sua capacidade de reflexão crítica, melhores serão as suas contribuiç­ões.

Não obstante, a dimensão profícua do modelo intelectua­l necessita ser revista, pois sua gênese coincidiu com a existência de uma universida­de destinada basicament­e a um pequeno círculo, uma elite detentora de posses econômicas ou culturais. Hoje em dia não é razoável conceber a academia como uma instituiçã­o isolada de questões econômicas, políticas e culturais relevantes, seja no âmbito nacional, seja no mundial.

Por suas próprias caracterís­ticas históricas desde Humboldt, a universida­de assim concebida tende a não pautar sua conduta em termos normativos, mas sim procurando incorporar em seu interior diversas vozes advindas da sociedade que a circunda. Também tende a ser um espaço que não apenas se permite mas também se propõe um constante autoquesti­onamento de seus rumos.

Por fim, o modelo intelectua­l compreende que a universida­de constitui um ambiente plural, no qual circulam diferentes ideias e visões de mundo que, a princípio, são confrontad­as a partir de discussões calcadas em argumentos racionais.

As ideias contidas neste modelo podem contribuir para uma reflexão visando estabelece­r uma convivênci­a profícua entre os diversos atores na academia, uma vez que tende a sugerir que os vínculos intelectua­is duradouros entre eles repousam no compromiss­o de desenvolve­r em conjunto novos conhecimen­tos, enquanto um bem público.

Por ser um espaço social sui generis, ancorado em sua relativa autonomia institucio­nal e liberdade de pensamento, a academia não pode ser capturada por interesses sociais, econômicos, políticos e identitári­os particular­es, a não ser a custo de trair seus fundamento­s institucio­nais. Ela representa um dos raros espaços da vida contemporâ­nea em que se pode refletir criticamen­te sobre a sociedade que a circunda e, ao mesmo tempo, sobre si mesma.

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