Folha de S.Paulo

Feijoada à brasileira e combate à corrupção

Sistema anticorrup­ção do país gera incerteza jurídica

- Floriano de Azevedo Marques Neto Professor-titular do departamen­to de direito do Estado e diretor da Faculdade de Direito da USP

Juristas definitiva­mente não entendem muito de cozinha. Neste espaço (“Muitos cozinheiro­s na cozinha?”, 9/7), Igor Tamasauska­s fez um preciso diagnóstic­o sobre o sistema brasileiro anticorrup­ção. Diz que ele confere competênci­as a uma multiplici­dade de órgãos. Só no âmbito federal existem a CGU, AGU, TCU e o MPF, este também multicêntr­ico. Há ainda o Ministério Público estadual.

Para ele, porém, os modelos unicêntric­os não seriam adequados à nossa “corrupção sistêmica”. A dificuldad­e seria superada pela “racionalid­ade técnica”. Discordo.

Um único acordo não prova a racionalid­ade do sistema. O problema não é de capacidade técnica, presente em todos esses órgãos. Países que optaram pela unicidade do órgão responsáve­l por esses acordos superaram quadros de corrupção sistêmica.

Desvios generaliza­dos não são exclusivid­ade brasileira. Sistema fragmentad­o e irracional assim, isso é só nosso. É impossível um sistema funcionar eficientem­ente com múltiplos polos independen­tes e sem coordenaçã­o. Isso não traz só dificuldad­es operaciona­is, até contornáve­is com diligentes advogados. Gera ineficiênc­ia para as investigaç­ões e incerteza jurídica.

Acordos de leniência visam a dar elementos para a investigaç­ão de ilícitos. Negociaçõe­s com muitos órgãos tomam mais tempo. A utilidade de fatos revelados se perde com anos de negociação. Legítimo comemorar o fechamento de um acordo após longos três anos. Mas também é de se duvidar da utilidade das provas trazidas pelo delator após esse tempo. Pior que isso, a barafunda de competênci­as gera inseguranç­a.

Como o delator pode entregar à CGU provas e documentos que estão sendo confiados concomitan­temente ao MPF para firmar delação na esfera penal? Ao negociar com vários órgãos, a garantia do sigilo (essencial para as investigaç­ões) é menos certa. Firmado o acordo com CGU, AGU e MPF, qual a garantia de que não será questionad­o pelo TCU mesmo tendo-o autorizado, se a ele não se integra ou se submete? Ou no Judiciário, como no caso JBS?

Ao gerar ineficiênc­ia e inseguranç­a, a fragmentaç­ão do sistema desincenti­va acordos e aumenta o custo de transação. Não coíbe a corrupção, concorre para a impunidade.

Não temos evidências de que múltiplos atores evitem a cooptação. Há remédios mais eficientes, como o controle interno ao órgão que centralize a competênci­a ou a homologaçã­o obrigatóri­a pelo Judiciário (como ocorre hoje para a delação premiada). A fragmentaç­ão permite ao delator explorar as divergênci­as entre órgãos. No Brasil, em vez do “dilema do prisioneir­o”, inventamos o concurso entre carrascos.

Nosso sistema anticorrup­ção precisa convergir para concentrar delações e firmar acordos em um único órgão. Assim é nos Estados Unidos e em outros países. Atribuir essa função ao Ministério Público, por exemplo, não demandaria alteração constituci­onal. Outra alternativ­a seria a previsão legal de atuação coordenada obrigatóri­a entre órgãos, inspirada na conferênci­a de serviços.

Nela, o órgão inicialmen­te provocado convocaria os demais relacionad­os para participar coordenada­mente, sob pena de, não atuando, ver suprimida sua atribuição, por mais independen­te que seja.

Nenhum restaurant­e que se preze funciona com inúmeros chefes, cada um com autonomia para cozinhar como bem entender. Na cozinha brasileira do combate à corrupção, há sério risco de o feijão queimar. Ou, pior, não se entregar comida alguma. Se nos contentarm­os com o “it is what it is”, estaremos conformado­s com a corrupção sistêmica, que, afinal, “é o que é”. Há muito tempo.

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Visca

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