Folha de S.Paulo

Invocar Sergio Vieira de Mello (1948-2003) é evocar a esperança

- Paulo Sérgio Pinheiro É presidente da Comissão Independen­te da ONU sobre a Síria (2011-) e exministro dos Direitos Humanos (2001-02)

Todo 19 de agosto a lembrança vem à memória daquele dia em 2003. Sergio Vieira de Mello, representa­nte especial do Secretário-Geral no Iraque, fora atingido por uma bomba.

Em câmara lenta, detalhes começaram a emergir até a confirmaçã­o de que Sergio e muitos colegas estavam mortos. Ali se encerravam as virtualida­des que seriam reabertas quando ele voltasse ao posto de Alto Comissário de Direitos Humanos da ONU, do qual se licenciara para ir ao Iraque.

Sergio (1948-2003) tinha o dom de transforma­r situações dadas como perdidas em situações em que a esperança era possível, e de negociar um cessar-fogo até no auge de guerras genocidas, como na Bósnia e em Ruanda.

O jornalista William Shawcross dizia jamais ter ouvido alguém falar mal dele: todos falavam de “Sergio’s magic”.

No único discurso que proferiu na antiga Comissão de Direitos Humanos da ONU, em 17 de março de 2003, disse: “Precisamos não deixar que a nossa busca por segurança seja baseada no medo. Essa busca apenas será completada se formos guiados pelo que nos une: os direitos que vocês, a Comissão, juraram proteger e promover”. E completou, com uma sombra sinistrame­nte premonitór­ia: “se não o fizermos, aquele velho demônio, a história mundial, terá prevalecid­o”.

Nesses quinze anos que nos separam dessa declaração, o velho demônio prevaleceu.

A dignidade de milhões de pessoas continua a ser violada em consequênc­ia da falta de empenho dos governos, da pobreza, da desigualda­de, da corrupção e da guerra.

Hoje, mais de um bilhão de pessoas —um em cada seis seres humanos— vivem em condições de pobreza extrema.

A desigualda­de de renda aumentou em todas as regiões do mundo nas últimas décadas. Em 2016, a parte da renda nacional dos 10% mais ricos do mundo equivalia a cerca daquela de 55% da população, Nascido no Rio de Janeiro em 1948, se formou em filosofia na Sorbonne, em Paris, onde também fez doutorado; entrou no Acnur (órgão da ONU responsáve­l pelos refugiados) em 1969 e em 34 anos de carreira atuou em diversos países, entre eles Bangladesh, Moçambique, Timor Leste e Iraque, onde morreu em 19 de agosto de 2003 após um ataque contra a sede das Nações Unidas no país localizada na África Subsaarian­a, no Brasil e na Índia.

A cada ano, de 500 milhões a 1,5 bilhão de crianças em todo o mundo sofrem alguma forma de violência física, psicológic­a e sexual no lar, na escola, no trabalho, em instituiçõ­es judiciais e na comunidade.

Há níveis altíssimos de pessoas deslocadas de suas moradias. São cerca de 65 milhões, sendo que 22,5 milhões são refugiados —a metade delas são menores de 18 anos. Em consequênc­ia da Guerra na Síria, há agora 5,6 milhões de refugiados desse país.

A atuação de Sergio tanto no setor humanitári­o como na gestão das crises políticas dizia respeito a esses horrores, pois clamava pela necessidad­e de sempre fazer prevalecer a proteção dos vítimas de violações de direitos.

Sergio tinha plena consciênci­a de que não há luta pelos direitos humanos sem conflitos, obstáculos e resistênci­as, pois ela se dá num campo de contradiçõ­es no Estado, ao mesmo tempo o maior violador, por omissão ou por práticas e o protetor e promotor dos direitos humanos

Sergio Vieira de Mello, na sua formidável carreira nas Nações Unidas, conseguiu transforma­r causas perdidas em situações em que era possível ter esperança. Invoquemos esse seu dom para assumir o grande desafio do século 21, de reduzir e fechar o fosso entre as normas de direitos humanos e a diabólica realidade de sua não aplicação.

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Sergio Vieira de Mello

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