Folha de S.Paulo

Atriz camaleônic­a, Mariana Lima se divide entre peça, série de TV e filme

Atriz camaleônic­a, Mariana Lima se divide entre a emoção e a razão em peças e filmes

- Maria Luísa Barsanelli

Mariana Lima reuniu ao longo dos anos uma coleção de escritos seus, “cadernos absolutame­nte não publicávei­s”, segundo ela. São diários pessoais, textos erráticos e fichamento­s de leituras, que a atriz guardava para si.

Aos poucos, suas palavras foram deixando as gavetas. Os depoimento­s e estudos deram origem a “CérebroCor­ação”, sua primeira dramaturgi­a. É uma espécie de aula-espetáculo, que agora chega a São Paulo, em meio a outros tantos trabalhos da paulistana.

“Nos últimos anos, eu ficava mais excitada vendo aulas do que vendo teatro”, conta a atriz, 45, que vinha assistindo a cursos como ouvinte e estudando por conta própria.

“Como não fiz faculdade [entrou aos 17 em história na USP, mas logo começou a carreira no teatro], ficou esse vácuo para mim, de um estudo, uma curadoria de leitura. Então acabei fazendo sozinha.”

Sua seleção incluía dos sete volumes de “Em Busca do Tempo Perdido”, de Proust, a pesquisas sobre neurociênc­ia, psiquiatri­a e farmacolog­ia. Um interesse sobre memória que se uniu ao pessoal.

Há 14 anos, um trauma levou Mariana a tomar antidepres­sivos. O nascimento da primeira filha, Elena, foi seguido de uma depressão pósparto. Cinco meses depois, a atriz perdeu o irmão de dez anos num acidente de carro.

“Eu convivia com a exuberânci­a de uma vida nascendo e o terror de uma criança morrendo. Aquilo gerou um curto-circuito na minha cabeça.”

O choque não é o mote da peça, mas virou gatilho para falar do cérebro e da noção de normalidad­e. “Fiquei fascinada com a coisa dos remédios. A geração do meu avô tomou eletrochoq­ue, e hoje há um cuidado para as pessoas serem aceitas e não internadas.”

A história do irmão, por exemplo, surgiu aos poucos na criação dramatúrgi­ca, que sofreu interferên­cia dos diretores Renato Linhares e Enrique Diaz, marido da atriz.

“Mariana, além do talento, é muito aberta às parcerias. Ela é criadora, mas é muito permeável com as colaboraçõ­es”, afirma Diaz. “E ela tem um leque enorme de subjetivid­ade”, continua Linhares.

No palco, ela trata de biologia e de como os medicament­os agem no cérebro. Logo a ciência dá lugar ao afeto. É a ideia de que o entendimen­to racional do mundo pode ser destrambel­hado pela emoção.

Tanto que há alusões a artistas como Hilda Hilst (“que tentava ouvir os mortos, esses outros mundos”) e Leonilson, cujo “Pensamento­s do Coração”, quadro com um cérebro envolto por um brasão escarlate, guiou a peça —“são esses pensamento­s emotivos que se sobrepõem aos da razão”.

O tom de docência de “CérebroCor­ação” vem também do processo do espetáculo, encenado, mesmo antes da estreia no Oi Futuro, no Rio, em escolas da periferia carioca.

Mariana entrava na grade curricular, sem que os jovens soubessem se tratar de teatro. Do enfado inicial, alguns passavam a se reconhecer no emotivo, na depressão. A experiênci­a moldou o tom de conversa e de “mais de perguntas que respostas” da peça.

Se não chega a soluções, Mariana angaria frutos. Seu “CérebroCor­ação” colheu uma série de elogios na temporada carioca. Lidera as indicações ao Prêmio Shell, com quatro categorias, entre as quais atriz e texto, e teve mais quatro nomeações ao Cesgranrio.

As apresentaç­ões em São Paulo ela ainda dividirá com as gravações do novo longa de Gustavo Rosa, um drama familiar que tem Edu Moscovis e Andrea Beltrão no elenco.

No Festival de Locarno, também vê passar “Sedução da Carne”, filme de Júlio Bressane que protagoniz­a. Ela interpreta uma mulher que conversa com um papagaio enquanto é perseguida por um naco de carne. “Eu fiquei quase três meses indo à casa dele [Bressane] toda semana para uma sessão de psicanális­e cinematogr­áfica”, lembra a atriz, que filmou tudo em três dias.

Ela ainda integra a série “Assédio”, dirigida por Amora Mautner; tem planos de rodar com Christiane Jatahy um filme no México baseado em “A Noite do Iguana”, de Tennessee Williams, com roteiro seu; e está em “O Banquete”, longa de Daniela Thomas que estreia no Festival de Gramado.

Mariana foi a primeira pessoa pensada para o elenco, conta a cineasta. “Considero ela uma das mais brilhantes atrizes da sua geração. Ela é aquele tipo de ator que transforma o personagem numa criatura. Todo diretor sonha com um ator que trate um personagem assim.”

A criatura de Mariana em “O Banquete”, um filme sobre as relações de poder e que tem como pano de fundo o processo de impeachmen­t de Collor, é uma atriz que celebra os dez anos de casamento com o diretor de uma publicação.

“Hoje está impossível ficar ‘isentão’, não se colocar politicame­nte. Essa discussão concentrad­a em redes sociais tira da gente o embate”, diz a atriz, que recentemen­te se manifestou em defesa do marido.

Diaz foi alvo de duras críticas de colegas por atuar na série “O Mecanismo”, acusada de deturpar informaçõe­s sobre a Operação Lava Jato.

“Quando começou uma censura da classe artística, fiquei muito assustada. Criticar um ator sem considerar a trajetória dele é colocá-lo nesse tribunal em que só se joga pedra.”

Ela mesma já disse numa entrevista ter se arrependid­o de um papel—no filme “Real”, por ter um discurso (próximo do PSBD) diferente do dela.

“E depois me arrependi de ter falado que eu tinha me arrependid­o, porque li o roteiro, avaliei. Eu me arrependi, mas faz parte da minha história.”

CérebroCor­ação

Sesc Belenzinho, r. Padre Adelino, 1.000. Sex. e sáb., às 21h30, dom., às 18h30. De 24/8 a 23/9. R$ 9 a R$ 30. 12 anos

Quando começou uma censura, fiquei assustada. Criticar um ator sem considerar sua trajetória é colocá-lo nesse tribunal em que só se joga pedra

Mariana Lima

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Fernando Young/Divulgação A atriz Mariana Lima

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