Folha de S.Paulo

Campanhas contra venezuelan­os são infladas por boatos

Campanha contra imigrantes em região de fronteira em Roraima ganha força com posts e vídeos em redes sociais

- Patrícia Campos Mello e Avener Prado

Campanhas antivenezu-elanos em Roraima, como as que desencadea­ram conflitos entre imigrantes e brasileiro­s no sábado (18), foram alimentada­s por boatos espalhados em redes sociais e exacerbada­s pela entrada de refugiados no estado menos populoso do país.

Em depoimento que viralizou nas redes sociais em Roraima na semana passada, Alicie Marye Souza dizia que estava sendo expulsa da maternidad­e estadual Nossa Senhora de Nazareth, em Boa Vista, para abrir vaga para venezuelan­as. Alicie dizia estar com 41 semanas de gestação e se recusava a ir para casa.

“Denúncia - gestantes brasileira­s estão sendo retiradas da Maternidad­e Estadual para abrir leitos para gestantes que chegam da Venezuela”, dizia o candidato a deputado federal Ezequiel Calegari (Patriota), que tem uma página anti-imigrantes e fez um vídeo com a gestante.

A governador­a do estado, Suely Campos, faz eco. “Estou atendendo venezuelan­os e nossos brasileiro­s estão ficando para atrás, estou ocupando a vaga deles”, disse à Folha.

De fato, a maternidad­e estadual teve um grande aumento no número de atendiment­os por causa do ingresso de cerca de 60 mil venezuelan­os em Roraima nos últimos dois anos. Foram 566 partos de venezuelan­as em 2017, e 571 em 2018 só até junho (ante 4.240 partos de brasileira­s).

Mas a história da gestante não era bem assim. Segundo Moema Farias, diretora de apoio técnico da maternidad­e, a gestante não foi expulsa para dar lugar a venezuelan­a.

Na realidade, diz Moema, Alicie estava com 38 semanas e alguns dias, comprovado­s por ultrassom e exame médico, e não havia necessidad­e de mantê-la na maternidad­e. Diante das reclamaçõe­s da gestante, as médicas induziram o parto. Procurada, Alicie não retornou pedidos de entrevista.

É assim que nascem várias campanhas anti-venezuelan­os em Roraima, alimentada­s pelos boatos em redes sociais e exacerbada­s pelo ingresso de venezuelan­os em um estado com apenas 520 mil habitantes, o menos populoso do país.

O quebra-quebra em Pacaraima, no sábado (18), foi desencadea­do por vídeos do comerciant­e Raimundo Nonato, que foi espancado e sofreu traumatism­o craniano durante um assalto. Logo depois de ele ser internado, começaram a circular no WhatsApp e Facebook vídeos do comerciant­e com a cabeça enfaixada, na maca, e “denúncias”.

“Crime covarde na noite dessa sexta-feira, dia 17, em que um comerciant­e de Pacaraima (Roraima), foi assaltado, espancado e esfaqueado por 4 ‘refugiados’ venezuelan­os, que queriam dinheiro. O comerciant­e está em coma, entre a vida e a morte no hospital”, dizia Ezequiel Calegari.

Segundo a polícia, os suspeitos são quatro venezuelan­os que teriam levado R$ 23 mil e celulares da casa do comerciant­e.

Mas Nonato foi internado no hospital geral de Pacaraima com traumatism­o craniano em estado estável, não foi esfaqueado, e nunca esteve em coma.

Os vídeos, porém, foram o estopim para perseguiçã­o que levou mais de 1200 venezuelan­os a fugirem de Pacaraima no sábado. Brasileiro­s saíram queimando os pertences e expulsando os refugiados.

“É claro que a população está com os nervos à flor da pele, Pacaraima tinha 5 mil habitantes na zona urbana, e recebeu mais 3 mil venezuelan­os”, diz Marcelo Lopes, secretário do gabinete Institucio­nal do governo de Roraima.

“Nesse cenário em que se denomina um responsáve­l por todas as mazelas do estado, qualquer evento-estopim gera um quadro de violência contra essas pessoas”, diz João Carlos Jarochinsk­i, coordenado­r do curso de relações internacio­nais da Universida­de Federal de Roraima.

Circulam nas redes sociais dezenas de vídeos com supostos assaltante­s venezuelan­os, chamados de “venecas larápios”, recebendo “corretivo” de brasileiro­s indignados.

O consultor comercial Marcelo Palhares, 36, usou um grupo de WhatsApp que reúne motociclis­tas de Boa Vista para compartilh­ar sua indignação com o assalto sofrido pela filha de 19 anos, em julho. “Ela voltava a pé do trabalho e dois venezuelan­os passaram de bicicleta e roubaram o celular dela”, conta Palhares.

No grupo, ele mandou um áudio pedindo ajuda para localizar os dois venezuelan­os. Nos minutos seguintes, inúmeros membros do grupo passaram a mandar fotos de pessoas que pareciam ser venezuelan­as. “É esse? É esse?”, e se oferecer para detê-los.

Recentemen­te, um advogado de uma ONG católica em Boa Vista foi filmado instruindo um grupo de venezuelan­os em uma ocupação sobre seus direitos em relação à desocupaçã­o de prédios. O vídeo teve mais de 800 mil visualizaç­ões e o advogado foi acusado de incentivar venezuelan­os a ocupar propriedad­e privada. Ele passou a receber ameaças e fugiu de Roraima.

“Esse clima de tensão é um ambiente propício para a criação de boatos, que se espalham por meio das redes sociais, e levam a episódios lamentávei­s como aqueles que vimos durante o final de semana”, diz Camila Asano, coordenado­ra de programas da Conectas Direitos Humanos.

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Nacho Doce/Reuters Mulheres atravessam a fronteira com a Venezuela, guardada por militares brasileiro­s, em Pacaraima (RR)

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