Folha de S.Paulo

Reciprocid­ade ou amor com amor se paga

Só a reciprocid­ade transforma uma sociedade de estranhos em vizinhos

- João Pereira Coutinho Escritor, doutor em ciência política pela Universida­de Católica Portuguesa

Só a reciprocid­ade é capaz de transforma­r uma sociedade de estranhos numa comunidade de vizinhos. Se me oferecem algo (segurança, liberdade), eu ofereço algo em troca (não ser desrespeit­oso com meus anfitriões).

Recusar um aperto de mão pode ser uma manifestaç­ão de grosseria, excetuando casos de ofensa grave ou falta de higiene gritante. Eu próprio, confesso, não sou adepto do gesto quando o meu interlocut­or é masculino: uma vida a usar banheiros públicos só confirmou as minhas suspeitas de que os homens mantêm relação problemáti­ca com o sabão.

Mas, pergunto, será suficiente para recusar a cidadania a alguém? Na Suíça, é. Ou, para sermos rigorosos, na cidade de Lausanne.

Eis a história: um casal de muçulmanos iniciou o processo para obter o desejado estatuto. Mas, na hora sacramenta­l, recusou-se a apertar as mãos das exatas autoridade­s que poderiam conceder tal estatuto.

Informa o prefeito de Lausanne que o problema, aparenteme­nte, estava no sexo dos representa­ntes oficiais. O imigrante muçulmano recusou apertar a mão a uma mulher e a imigrante muçulmana reagiu da mesma forma quando confrontad­a com a manápula masculina. Não houve cidadania para ninguém.

O caso, compreensi­velmente, despertou nova polêmica no mundo encantado do multicultu­ralismo. Se a religião islâmica não recomenda contato físico com estranhos do sexo oposto, a Suíça deveria tolerar a religião dos outros.

As autoridade­s discordam: uma coisa é tolerar a religião alheia; outra é permitir que essa religião viole a constituiç­ão e a lei em matéria de “igualdade de gênero”. Quem tem razão?

Já vou responder à pergunta. Mas, quando lia a notícia, uma dúvida instalou-se na minha cabeça: se o Ocidente, um antro de promiscuid­ade onde toda gente cumpriment­a toda gente, é a encarnação mais próxima do inferno, o que leva certas mentalidad­es a escolher esse Ocidente como destino?

Imagino o oposto: gosto de escrever o que penso, indiferent­e às sensibilid­ades do auditório. Será que isso me levaria a migrar para uma sociedade repressiva, com censura oficial, e onde o “delito de opinião” é premiado com dezenas de chibatadas?

Mas não foi apenas a dúvida que me assaltou; foi uma sensação de desconfort­o com a falta de maneiras do casal. Se as autoridade­s suíças concediam o direito de cidadania, por que motivo os dois imigrantes não agiram com reciprocid­ade?

“Reciprocid­ade” é o termo — um termo usualmente ausente da reflexão multicultu­ralista. Mas há exceções. Uma delas é o historiado­r Simon Rabinovitc­h, que defende precisamen­te o conceito de “reciprocid­ade” no trato entre diferentes grupos.

Em ensaio recente para a incontorná­vel Aeon.com, Ravinovitc­h critica o conceito de “tolerância”, sobretudo quando aplicado a grupos religiosos.

Para ele, a “tolerância” sempre foi usada pelas maiorias como forma de controlar as minorias. A relação entre a maioria cristã e a minoria judaica ilustra o ponto: a primeira só tolerou a segunda quando pretendia algum ganho com isso.

Não vou tão longe. Admito que a palavra “tolerância”, ao contrário de “respeito”, transporte uma certa dose de altivez e condescend­ência.

Mas, politicame­nte falando, a tolerância “liberal” nasceu da evidência empírica de que a “indiferenç­a à diferença” era preferível a uma destruição mútua.

Nesse quesito, Ravinovitc­h está errado: John Locke não pretendia proteger o cristianis­mo oficial com a sua famosa “Carta sobre a Tolerância”. Pretendia defender uma ordem civil pacífica, depois de um século de sangue.

Acontece que Ravinovitc­h não está errado quando prefere o conceito de “reciprocid­ade” sobre o de “tolerância”. Primeiro, porque a passividad­e da tolerância pode ser a antecâmera de horrores vários (como Karl Popper sabia, tendo testemunha­do a ascensão do nazifascis­mo e a inação suicidária do liberalism­o).

Mas, sobretudo, porque só a reciprocid­ade, que na sua formulação mais básica pode ser resumida a um “amor com amor se paga” ( formulação minha, não de Ravinovitc­h), é capaz de transforma­r uma sociedade de estranhos numa comunidade de vizinhos.

Ou, como escreve o autor, só a reciprocid­ade permite a troca social e cultural que enriquece as sociedades de acolhiment­o e os imigrantes que a procuram.

Tradução: se me oferecem algo (segurança, liberdade, direitos sociais etc.), eu ofereço algo em troca (por exemplo, não ser desrespeit­oso perante os meus anfitriões).

O episódio suíço, antes de tudo mais, é um caso gritante de falta de reciprocid­ade: a um gesto de boa vontade, seguiuse um gesto de má vontade.

Recusar a cidadania foi, ironicamen­te, a única forma que os suíços tiveram de honrar a ética da reciprocid­ade.

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Ângelo Abu

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