Folha de S.Paulo

Eleição sem Lula é fraude?

Há uma trama com ramificaçõ­es fora do nosso país

- Celso Amorim Ex-ministro das Relações Exteriores (2003-2010, governo Lula) e da Defesa (2011-2015, governo Dilma)

Minha resposta à pergunta que formulo, cerca de oito meses após haver iniciado um manifesto com esse título, firmado por 330 mil pessoas, inclusive intelectua­is de altíssima respeitabi­lidade, como Noam Chomsky e Costa-Gavras, continua a ser afirmativa.

Os procedimen­tos judiciais que colocaram Lula na prisão e ameaçam impedi-lo de se candidatar são questionad­os por juristas de grande renome de diferentes nacionalid­ades. Primeiros-ministros e presidente­s de variadas tendências e regiões do mundo têm se pronunciad­o no mesmo sentido. A tentativa do governo atual de desqualifi­cá-lo só revela ignorância e má-fé.

Não é menos significat­ivo que o papa Francisco tenha prontament­e acedido a um pedido de audiência para que eu expusesse a situação do ex-presidente e as ameaças à democracia brasileira. Desnecessá­rio sublinhar que Sua Santidade tinha plena consciênci­a de que se tratava, no meu caso, de uma pessoa que fora ministro de Lula durante seus dois mandatos e que continua a privar de suas relações.

Durante a conversa, da qual participar­am dois ex-ministros da América do Sul, o argentino Alberto Fernández e o chileno Carlos Ominami, o papa recordou a homilia de 17 de maio sobre a maledicênc­ia, na qual denunciou o recurso à nova estratégia de derrubar governos legítimos: primeiro, a difamação pela mídia; depois, a perseguiçã­o judicial e, finalmente, o golpe.

Ao final, Francisco enviou, por escrito, uma bênção ao presidente Lula e, com a humildade que o caracteriz­a, pediu-lhe que rezasse por ele. Na última quinta-feira (16), em companhia do prêmio Nobel Adolfo Pérez Esquivel, fiz a entrega da mensagem ao ex-presidente na cela da Polícia Federal de Curitiba.

Comportame­ntos recentes de alguns dos magistrado­s, não desmentido­s ou negados de forma cabal, mostram claramente que estão empenhados não tanto em cumprir a “letra fria” da lei, mas sim em evitar o “mal maior”, isto é, a volta ao poder do presidente que se empenhou em combater as gritantes desigualda­des do país e dar ao Brasil voz própria no cenário internacio­nal.

Em tempos de redes de robôs e internet das coisas, não é preciso buscar um cérebro único para chegar à conclusão de que se tratou e se trata de uma trama bem urdida, com ramificaçõ­es que se estendem para fora do nosso país. Não esqueçamos —além da “cooperação informal” entre os sistemas de Justiça norte-americano e brasileiro, elogiada por um procurador dos Estados Unidos— a espionagem, denunciada por Snowden, de que foram alvo a Petrobras, o Ministério de Minas e Energia e a presidenta Dilma. Pode-se gostar ou não de teorias conspirató­rias. Mas só muita ingenuidad­e pode fazer crer em tanta coincidênc­ia.

Eliminar Lula da disputa significar­á uma fraude monumental em relação à vontade popular. Fraude, como ensina Houaiss, é .... “ato ardiloso, (...) de má-fé, com o intuito de lesar ou ludibriar outrem”. Outrem, no caso, é povo brasileiro.

Na sexta-feira (17), o Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas, cuja jurisdição foi voluntaria­mente acolhida pelo Estado brasileiro, ao ratificar o protocolo facultativ­o sobre Direitos Civis e Políticos, em 2009, estabelece­u, por meio de uma medida liminar (interim measure), que o ex-presidente deve ter garantidos seus direitos políticos, inclusive os inerentes à sua candidatur­a à Presidênci­a, até que se esgotem os recursos em um processo judicial justo (sic).

Recorde-se que o comitê é parte da estrutura do Pacto de Direitos Civis e Políticos, internaliz­ado no Brasil em 1992, quando o ministro das Relações Exteriores era um ex-juiz da nossa Corte Suprema.

Não acatar a diretiva de uma entidade internacio­nal de natureza obrigatóri­a colocará nosso país à margem do direito internacio­nal, na mesma posição que outrora foi ocupada por países como Mianmar e a África do Sul do tempo do apartheid. Isso afetará não só a “imagem” do Brasil (uma obsessão das nossas elites), mas a credibilid­ade do país como membro da comunidade das nações civilizada­s.

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