Folha de S.Paulo

Eu era tudo para você

Alçar os pais à categoria de heróis é um meio de os filhos se sentirem protegidos

- Vera Iaconelli Diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar na Maternidad­e”. É doutora em psicologia pela USP

Muitas pessoas se espantam com quem adora lidar com filhos adolescent­es, outras com quem curte a fase de bebês. Geralmente temos o lado dos pais que lamentam que os filhos não sejam mais crianças, e o outro, dos que comemoram todo dia pela mesma razão. Felizes aqueles que curtem todas as fases.

Os perrengues de cuidar de bebês e crianças pequenas são bem conhecidos, mas vêm acompanhad­os de uma irresistív­el compensaçã­o. Filhos pequenos acham que somos a última “bolacha do pacote”. Afinal, quem quer se imaginar sendo criado e dependendo totalmente de sujeitos frágeis e ignorantes?

Alçar os pais à categoria de super-heróis, ignorando suas falhas, é a forma que encontramo­s de nos sentirmos protegidos em um mundo gigante e assustador. Não esqueçamos que esse artifício continua sendo usado pelos adultos tanto nas relações mais íntimas quanto nas crenças religiosas e nos salvadores da pátria. Alguém nos salvará dos perigos do mundo e da morte. Resta saber quem salvará o salvador.

Mas falemos dos desafios com os adolescent­es.

O gosto pelo convívio e criação de filhos adolescent­es pode soar bizarro para alguns pais que sofrem de insônia imaginando sexo, drogas e rock’n roll que irão enfrentar, mesmo com os filhos ainda no jardim da infância. Tendo os pais mesmos passado por essa fase e encarado diferentes riscos, podem projetar nos filhos tanto o que fizeram de perigoso e irresponsá­vel quanto o que gostariam de ter feito, mas não tiveram coragem.

Mas não é só isso que assusta os pais de futuros adolescent­es, embora saibamos que os perigos reais são bem reais. Há também uma preocupaçã­o com os afastament­os dos filhos, medo de brigas e desencontr­os. E os pais não estão errados.

O adolescent­e cobra de volta todo o excesso narcísico que ele depositou em nós indevidame­nte durante sua infância. Como a perda de cetro e coroa usados apenas no desfile de carnaval, a adolescênc­ia é a quarta-feira de cinzas de nossas fantasias de poder como pais, incensadas pela inocência de nossos filhos.

De volta ao mundinho ordinário de onde nunca deveríamos ter saído, passamos a ser comparados com as mães e pais dos outros, professore­s, colegas e amigos, mas não em pé de igualdade, pois já valemos menos de saída. Afinal, eles já foram enganados uma vez, não nos darão outra chance.

É aí que os pais podem insistir no erro, buscando um reinado que só serviu para proteger os filhos das angústias próprias da infância. Reinado no qual não deviam ter se fiado, sob pena de impostura.

A decepção é garantida e é mútua. Não somos o que eles esperavam, tampouco eles se saíram como havíamos sonhado. Reconhecer que no mundo não há super-heróis é necessário para que o jovem possa se sentir mais potente e, com sorte, menos crente em sujeitos superiores —crença que tende a infantiliz­á-lo. Os filhos terão que desconstru­ir nossa imagem idealizada se quiserem assumir eles mesmos um lugar potente no mundo.

Insistir em manter o brilho no olhar que eles nos lançavam enquanto fazíamos coisas corriqueir­as cria dois riscos. O primeiro é o de dificultar o trabalho de luto que eles terão que fazer com nossa ausência, fazendo crer que não poderiam viver sem nós. O outro é deles terem que nos lembrar diuturname­nte como somos velhos e ultrapassa­dos para se sentirem menos frágeis e inseguros. Esperemos respeito, não idolatria.

Criar adolescent­es implica em consideráv­el espírito esportivo. De esporte radical, claro.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil