Folha de S.Paulo

Filme retrata o extermínio da cultura ianomâmi

Documentár­io de Otavio Cury é construído sobre a crença indígena de que se apropriar da imagem alheia é proibido

- Alexandre Agabiti Fernandez

Como Fotografei os Yanomami

Brasil, 2018. Direção: Otavio Cury. Livre. Em cartaz.

Durante os cinco primeiros minutos deste documentár­io de Otavio Cury vemos apenas pegadas na floresta. As marcas de pés na terra aparecem entremeada­s com letreiros que reproduzem trechos do livro “A Queda do Céu - Palavras de um Xamã Yanomami”, do líder indígena Davi Kopenawa e do antropólog­o francês Bruce Albert, que explicam como esse povo lida com a imagem.

A pegada é uma marca, uma imagem de alguém. Para os ianomâmis —que vivem na região em torno da fronteira com a Venezuela—, a imagem pertence à pessoa.

Acreditam que o uso da imagem por inimigos ou entidades malignas pode ter consequênc­ias terríveis ao indivíduo. A imagem, como uma fotografia ou um filme, eterniza uma lembrança da pessoa, algo considerad­o nocivo pelo sistema de crenças desses índios, em que os mortos são tabu e devem ser esquecidos. Tomar a imagem alheia é algo proibido nessa cultura.

Apesar de lançar essa questão logo de saída, o documentár­io a relativiza, afirmando que muitos ianomâmis já aceitam ter sua imagem registrada, e mostra um ritual filmado pelos próprios indígenas. Em todo caso, o filme se faz o tempo todo dentro dessa tensão.

A breve introdução sobre as pegadas, de contornos nitidament­e etnográfic­os, dá lugar a um registro mais próximo da reportagem, em que profission­ais de saúde de organismos governamen­tais atendem os índios em plena floresta. Diarreia, pneumonia e gripe são uma constante. Doenças trazidas pelos brancos que são combatidas com ineficiênc­ia pelos brancos.

A partir desse ponto e até quase o fim do filme mesclamse depoimento­s de enfermeiro­s e técnicos de enfermagem —claramente pouco preparados para a tarefa— dando seus pontos de vista. Vários deles têm ideias estereotip­adas e mal disfarçada­s sobre a superiorid­ade do homem “civilizado”. Alguns poucos manifestam admiração.

A cena final, da inauguraçã­o da primeira Unidade Básica de Saúde Indígena, em 2015, é o retrato acabado do extermínio da cultura ianomâmi. Uma mistura indigesta de discursos, hino nacional, pai-nosso, cantos e danças rituais. Vários celulares documentam a cena.

A visada crítica de Cury é clara e oportuna, mas poderia ir mais fundo.

Infelizmen­te nada é dito sobre a ameaça representa­da por garimpeiro­s —que trabalham ilegalment­e no território ianomâmi, transmitem doenças mortais como a malária e poluem os rios com mercúrio— e pecuarista­s — que invadem e desmatam as terras na fronteira leste.

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Divulgação Cena do documentár­io ‘Como Fotografei os Yanomami’, de Otavio Cury

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