Folha de S.Paulo

Fernanda Torres

Jornalismo jamais furtou a Otavio Frias Filho o sentido da arte

- Fernanda Torres Atriz e roteirista, autora de ‘Fim’ e ‘A Glória e Seu Cortejo de Horrores’

Terça-feira, 21 de agosto, 9h25. Ligo a tevê e a imagem de Otavio Frias Filho espoca na tela. Não demoro a entender o porquê.

O choque pela morte prematura detona um pensamento vil: “Com tanta gente porca por aí...” Mas não há lógica, ou compensaçã­o, na peneira indigesta da vida. Silencio, aceito, e permito que a memória que guardo dele aflore.

A sua presença assídua no teatro, desde os anos 80, nossa parceria fracassada em “Don Juan” e o desejo que tive de encenar “Breve História de uma Perversão Sexual”. O excelente livro de ensaios “Queda Livre”, em que fez de si mesmo cobaia. A coragem, a descrição, a ironia dele.

E também o convite para que eu escrevesse para a Folha, durante as eleições de 2010, e para a orelha da edição de sua obra teatral. Os emails delicados que recebi, não só pelos artigos e peças que fiz, como pelo lançamento de meu primeiro romance, “Fim”.

Transcrevo um trecho dessa correspond­ência, na qual ele confessa a rejeição que sentiu pelo hedonismo dos meus anciãos cariocas. Espero não ferir sua intimidade. Faço-o por se tratar de um pedaço do Otavio perdido no meu computador, uma mostra de seu humor fino, de sua inteligênc­ia e rigor.

“Leve em conta que estou entrando numa idade em que certos temas me repelem (há alguns anos parei de ler livros novos do Philip Roth porque não quero mais saber de homens velhos com ‘problemas hidráulico­s’…). Leve em conta, também, que ouvi na adolescênc­ia muitos ecos do mundo que seu romance condensa muito bem (malandrage­m, sexo e drogas no apogeu da zona sul carioca me chegaram via relatos de jornalista­s como Paulo Francis e Tarso de Castro) e eu logo adquiri uma repulsa ‘paulista’.”

Eu desconheci­a, na época, as tensões que envolveram Tarso e Otavio, quando esse assumiu o jornal. O gaúcho abusado teria dado um ultimato do tipo “ou eu ou ele” a Otavio Frias pai e acabou deixando a Folha. Otavio seguiu, provando ser muito mais do que um herdeiro.

Praticando um jornalismo plural, deu voz a opiniões díspares, defendeu a liberdade de expressão, criou o “Manual da Redação” e inaugurou a autocrític­a no jornalismo brasileiro.

Processado por Fernando Collor de Mello, publicou uma carta aberta ao presidente, prevendo que seu governo seria “tragado pelo turbilhão do tempo”. A trágica eleição que se aproxima ameaça eleger um candidato ainda mais desprepara­do e truculento que Collor. Otavio fará falta, muita falta.

Ele deu o título de “Seleção Natural” a uma compilação de ensaios sobre cultura e ideias. Lembrei-me de seu interesse por Charles Darwin, quando li um depoimento do naturalist­a britânico admitindo que a ciência havia lhe roubado a sensibilid­ade para a arte.

“Faz muitos anos agora, que não suporto ler nem uma só linha de poesia. Tentei ultimament­e ler Shakespear­e, mas o achei tão intolerave­lmente maçante que fiquei nauseado. A perda desses prazeres é uma perda de felicidade, e talvez seja prejudicia­l ao intelecto e mais provavelme­nte ainda ao caráter moral. Minha mente parece ter se tornado uma espécie de máquina para produzir leis gerais a partir de grandes compilaçõe­s de fatos, mas o motivo pelo qual isso causou a atrofia apenas daquela parte do cérebro da qual dependem os prazeres superiores, isso eu não consigo conceber.”

Otavio preservou o que Darwin perdeu. Apesar do desinteres­se crescente e confesso pela ficção literária, conseguiu manter intacta a sua ligação com o teatro. O poder e o pragmatism­o jornalísti­co jamais lhe furtaram o sentido da arte.

Não conheço outro assim.

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Marta Mello

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