Folha de S.Paulo

Os advogados e o aborto

- Hélio Schwartsma­n helio@uol.com.br

Até existem argumentos respeitáve­is contra o direito ao aborto. Equiparar a interrupçã­o voluntária da gravidez a um assassinat­o, como fez a Comissão de Direitos Humanos do Instituto dos Advogados de São Paulo, deflagrand­o um racha na vetusta instituiçã­o, não é um deles.

O argumento se revela incoerente tanto no plano jurídico como no moral. A declaração de que o aborto é um assassinat­o, que consta de documento aprovado pela comissão, mas que foi repudiado pela presidênci­a e por vários membros do instituto, não resiste nem sequer a uma análise da própria legislação sobre o tema.

Se o procedimen­to equivaless­e mesmo a um assassinat­o, o Código Penal jamais poderia autorizálo, como o faz, nos casos em que a gravidez resulta de estupro. Note-se que, na situação de perigo iminente de vida para a mãe (o outro cenário de aborto legal previsto na legislação), a eliminação do embrião ainda poderia ser vista como ato de legítima defesa. Mas isso não ocorre com o estupro. O análogo extrauteri­no dessa situação seria permitir que a vítima de violência sexual executasse o criminoso.

Causídicos poderiam, é claro, sustentar que o raciocínio está ontologica­mente correto e a lei é que erra ao permitir o aborto em casos de estupro. Mas, aí, como explicar as décadas de silêncio dos advogados paulistas? O Código Penal está em vigor desde 1940. O instituto existe desde 1874.

O argumento não é melhor na seara moral. Admitamos, para efeitos de arguição, que o embrião seja mesmo um ser vivo único que deve receber da sociedade proteção igual à que é dada a indivíduos já nascidos. Imaginemos agora que você, valente leitor, está num hospital em chamas. Só há tempo para mais um resgate. À sua esquerda encontra-se a ala pediátrica, onde ainda resta uma criança no quarto. À direita, o setor de criogenia, onde jaz uma geladeira com 200 embriões congelados. Você deve salvar a criança ou a geladeira? “I rest my case.”

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