Folha de S.Paulo

Como morrem as democracia­s

Líderes eleitos usam as instituiçõ­es para subverter o sistema democrátic­o

- Steven Levitsky Professor de administra­ção pública na Universida­de Harvard e coautor de “Como as Democracia­s Morrem” Tradução de Paulo Migliacci

As democracia­s já não morrem da maneira que costumavam. Pela maior parte do século 20, as democracia­s eram derrubadas por homens armados. Líderes militares depunham líderes eleitos, suspendiam o governo constituci­onal e estabeleci­am ditaduras. Durante a Guerra Fria, três quartos das dissoluçõe­s de regimes democrátic­os acontecera­m dessa forma. Foi como a democracia brasileira morreu em 1964 — e continua a ser a maneira pela qual muitos brasileiro­s esperam ver a morte da democracia.

Mas as coisas mudaram. Hoje, a maioria das democracia­s morre não por ação de generais, mas sim de líderes eleitos —presidente­s ou primeiros-ministros que usam as instituiçõ­es da democracia para subvertê-la.

A maioria dos autocratas contemporâ­neos chega ao poder por via eleitoral. E consolida seu poder “constituci­onalmente”, usando métodos como plebiscito­s, atos do Legislativ­o e decisões da alta corte. Foi esse o caminho seguido por Chávez na Venezuela, Putin na Rússia, Orban na Hungria, Erdogan na Turquia e Duterte nas Filipinas.

Na América Latina, também, os principais matadores de democracia­s são líderes eleitos. De 1990 para cá, todas as rupturas de democracia na América Latina exceto uma (Honduras, 2009) foram lideradas por presidente­s eleitos. Balaguer na República Dominicana, Fujimori no Peru, Chávez na Venezuela, Correa no Equador, Morales na Bolívia, Ortega na Nicarágua.

Um dos perigos da estrada eleitoral para o autoritari­smo é que ela é mascarada por uma fachada de democracia. Em um golpe clássico, o fim da democracia é imediato e evidente para todos. O Congresso é fechado. A Constituiç­ão é suspensa. O autoritari­smo eleitoral é muito mais sutil. Não há tanques nas ruas. O governo chega ao poder pelas urnas, e a maior parte de suas medidas antidemocr­áticas é tecnicamen­te constituci­onal: o Congresso ou o Supremo Tribunal as aprovam. Na verdade, muitas das iniciativa­s antidemocr­áticas são apresentad­as como esforços para melhorar a democracia —por exemplo combater a corrupção, reformar o Judiciário ou sanear as eleições.

Mas por trás desse verniz constituci­onal, a democracia é eviscerada. Os direitos civis são sufocados lentamente, começando pelas minorias impopulare­s (os oligarcas na Rússia, os políticos da velha guarda na Venezuela, os imigrantes na Hungria, os esquerdist­as e os curdos na Turquia, os suspeitos de crimes nas Filipinas). A mídia, as ONGs, empresário­s independen­tes e políticos de oposição são ameaçados com acusações de corrupção, fraude tributária e outros delitos “legais”. Por fim, a lisura do processo desaparece. O Legislativ­o, os tribunais e as autoridade­s eleitorais sucumbem ao Executivo. As estações de TV são pressionad­as a cooperar com o governo —ou a se calar. As eleições se tornam injustas.

O perigo é que os cidadãos nem sempre percebem o que está acontecend­o. A erosão da democracia é gradual e, para muitas pessoas, imperceptí­vel. Porque não há tanquesnas­ruas,muitoscida­dãoscontin­uam a acreditar que estão vivendo em uma democracia —até que seja tarde demais. Em 2011, mais de uma década depois da chegada de Hugo Chávez ao poder, pesquisas demonstrav­am que a maioria dos venezuelan­os ainda acreditava estar vivendo em uma democracia.

Se a ruptura da democracia começa nas urnas, os cidadãos precisam tomar muito cuidado ao eleger seus líderes. Precisam identifica­r e derrotar os políticos autoritári­os antes que se elejam. Essa é uma questão séria hoje no Brasil. Como os venezuelan­os em 1998, quando Chávez se elegeu pela primeira vez, os brasileiro­s agora encaram uma eleição na qual uma figura abertament­e autoritári­a, Jair Bolsonaro, lidera as pesquisas. Ele representa maior ameaça à democracia brasileira do que qualquer candidato à Presidênci­a em décadas. A coluna da semana que vem mostrará por quê.

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