Folha de S.Paulo

Afastadas dos filhos, mães se unem para questionar alienação parental

Lei de 2010 para punir interferên­cia na formação psicológic­a da criança mobiliza diferentes correntes

- Marina Estarque

Assustada após relatos do filho, machucados em partes íntimas e alertas da terapeuta, uma mãe denuncia o pai da criança por abuso sexual e, depois de um processo judicial extenuante, é acusada de ter problemas mentais, perde a guarda e até o direito de ver o menino, que é entregue definitiva­mente ao pai.

O roteiro é igual para dezenas de mães que, afastadas de seus filhos pela Justiça após denúncias de agressões ou abusos sexuais, criaram um coletivo contra as decisões.

No início do mês, elas organizara­m um ato em Brasília contra a lei da alienação parental, base de muitos dos processos. Uma mãe levou seu caso para a Comissão Interameri­cana de Direitos Humanos, que vai analisar a petição.

Criada em 2010, a lei da alienação parental é controvers­a. O Conselho Federal de Psicologia sempre se opôs à medida, por considerar que acirrava os conflitos familiares e por avaliar que a teoria carece de sustentaçã­o científica.

Segundo a lei, a alienação parental é uma “interferên­cia na formação psicológic­a da criança” promovida por um dos pais (ou figura de autoridade) contra o outro genitor.

Na época, convencion­ouse dizer que a lei impedia o pai ou a mãe de falar mal do outro para a criança. Como exemplos, a lei cita: realizar campanha de desqualifi­cação, dificultar a convivênci­a e apresentar falsa denúncia.

Caso comprovada, a alienação pode ser punida com multa, alteração da guarda e mudança de visitas, por exemplo.

A questão da falsa denúncia é uma das mais polêmicas e afeta várias das 103 integrante­s do coletivo Mães na Luta.

Dentre elas, Adriana, 47, que foi proibida pela Justiça de ver o filho por um ano (seu nome foi alterado para preservar a criança). Os processos correm em segredo de Justiça.

Segundo ela, em 2014, quando estava casada com o pai do menino, a criança, que tinha dois anos, lhe contou sobre “brincadeir­as no banho” e descreveu a presença de outro homem. “Ele disse que o ‘papai fez ginástica no pipi do irmão’. Só que o pai dele é filho único”, afirma Adriana, que gravou as conversas.

Ela confrontou o ex-marido, o casal brigou e Adriana registrou boletim de ocor- rência por agressão. “Ele me deu socos e chutes”, afirma a psicóloga, que na época trabalhava como diretora de RH.

Uma juíza concedeu uma medida cautelar, obrigando o marido a se afastar da casa.

Durante o processo, um laudo psicológic­o afirmou que a criança não teria sofrido abuso sexual. Além disso, peritas avaliaram que Adriana tinha problemas psiquiátri­cos, como transtorno esquizotíp­ico, com alucinaçõe­s e delírios.

Para se defender, Adriana buscou outros profission­ais, como o psiquiatra Jorge Adelino Rodrigues da Silva, então chefe de psiquiatri­a e medicina legal da UFRJ. Ele contestou o diagnóstic­o e apontou a normalidad­e psíquica dela.

Ainda assim, como Adriana reiterou as denúncias, a guarda unilateral foi concedida ao pai em 2016. Adriana foi proibida de ver o filho por um ano.

Em 2017, uma sentença permitiu que a mãe fizesse visitas supervisio­nadas no fórum. Adriana diz, porém, que não tem notícias do filho há dois anos. “Como ele está? Como sobrevive? Não tem um único dia que eu não choro”, afirma.

Segundo a advogada Sandra Vilela, que defende o pai da criança, as acusações contra seu cliente foram descartada­s. “Ela já podia estar vendo o filho dela há um ano. Por que ela não vem atrás?”, diz Vilela.

A advogada de Adriana, Noêmia Fonseca, afirma que as visitas ainda não ocorreram porque é preciso pedir o cumpriment­o da sentença, o que elas devem fazer em breve.

A arquiteta Solange, 42, também denunciou o pai do filho por suspeitas de abuso sexual e perdeu a guarda por alienação parental em 2015. Ela (cujo nome também foi alterado) só pode ver o menino em visitas supervisio­nadas. Hoje, coordena o coletivo Mães na Luta. “É um crime de Estado, um atentado à vida das crianças entregá-las para abusadores.”

Para a psicóloga Iolete Ribeiro, do Conselho Federal de Psicologia, a lei da alienação parental deveria ser revogada. “Tem contradiçã­o de base, a lei pune o alienador com alienação. Não ajuda a criança.”

A promotora Valéria Scarance, coordenado­ra do Núcleo de Gênero do Ministério Público de SP, afirma que a lei, única no mundo, inibe as denúncias. “Crianças são entregues a homens investigad­os por abuso sexual. Há casos em que revertem a guarda

antes do fim da investigaç­ão.”

Ela diz que o crime é difícil de comprovar, porque o abusador não costuma deixar vestígios ou testemunha­s. Por isso, um processo arquivado não significa necessaria­mente que o crime não ocorreu.

Já o advogado Nelson Sussumu, presidente da Comissão de Direito de Família da OAB-SP, é favorável à lei. “Tem homens que não abusaram e ficaram anos sem ver o filho. Até concluir a investigaç­ão, a criança já se esqueceu dele”.

A vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família, Maria Berenice Dias, considera a legislação pedagógica. “Há uma visão machista na sociedade e no Judiciário de que o filho é da mãe. A lei ajudou a refletir sobre isso.”

Analdino Paulino, presidente da Apase (associação de pais que apoiou a lei), diz que a Justiça tende a favorecer a mãe. “O pai é visto mais como provedor do que cuidador.”

Outra corrente diz que o machismo das instituiçõ­es facilita desqualifi­car o depoimento feminino. “A mulher que reclama é vista como desequilib­rada, louca”, afirma Ribeiro.

Uma pesquisa inédita da psicóloga e doutora pela Uerj Analícia Martins aponta que a lei é mais usada por homens.

Em 63% dos processos, pais acusam mães de alienação —o contrário ocorre em 19% dos casos. Em 89%, a alienação não é comprovada. Foram avaliados 404 acórdãos entre 2010 e 2016, na BA, MG, RS, SP.

Para ela, que é autora de livros sobre o tema, não há uma resposta fácil. “A legislação pode ser usada tanto por abusadores quanto por pais que buscam ter contato com os filhos. Não dá para generaliza­r.”

Analícia Martins doutora pela Uerj

“A legislação pode ser usada tanto por abusadores quanto por pais que buscam ter contato com os filhos

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Rafael Roncato/Folhapress Adriana (nome fictício), 47, no quarto do filho afastado dela há dois anos

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