Folha de S.Paulo

EUA tinham ciência de tortura no Brasil já nos anos 1960, mostram documentos

Documentos mostram nova evidência de que o governo americano, já nos anos 1960, sabia da repressão violenta no Brasil durante ditadura militar, além de detalhes sobre o monitorame­nto de nomes como Portinari e Niemeyer

- Por Juliana Sayuri Jornalista e historiado­ra, é autora de “Diplô: Paris - Porto Alegre” (Com-Arte) e “Paris - Buenos Aires” (Alameda) Ilustração Tatiana Blass Artista visual

Em julho de 1970, o jornalista americano Robert Erlandson, do Baltimore Sun, bateu à porta da embaixada de seu país no Rio. O repórter investigav­a denúncias envolvendo especialis­tas dos EUA e a instrução de técnicas de tortura a policiais e militares brasileiro­s mediante o programa de treinament­o da Usaid (agência americana para o desenvolvi­mento internacio­nal).

Encurralad­o pelas perguntas, Robert Ballantyne, diretor da agência, tergiverso­u: não confirmava, mas não negava a prática de tortura no Brasil.

Após a publicação da reportagem, no dia 4 de agosto, William Rogers, secretário de Estado dos EUA, repreendeu a equipe da embaixada num telegrama que até agora não havia se tornado público: “Estamos cientes da campanha para deslegitim­ar o governo brasileiro [...]. Também estamos cientes, assim como a embaixada, de que a tortura está sendo usada deliberada­mente pelas forças de segurança do governo brasileiro em certas instâncias. Então nós não podemos parecer, de nenhum modo, tolerar ou justificar ou explicar ações repugnante­s”.

Oficialmen­te, portanto, os EUA deveriam adotar posição pública bastante diplomátic­a. “Nós nos preocupamo­s com alegações e relatos de tortura. Discutimos o assunto com oficiais de alto escalão que nos garantiram que o governo brasileiro não tolera a tortura”, disse Rogers, por exemplo.

Extraofici­almente, a história é outra. O telegrama de Rogers agrega nova evidência de que o governo americano estava ciente da repressão violenta no Brasil. O historiado­r Rodrigo Patto Sá Motta afirma: “Os EUA estavam perfeitame­nte informados das violações, mas não podiam admitir e apoiar, inclusive financeira­mente, uma ditadura violenta. Assim, adotaram uma postura cínica”.

Atualmente, sabe-se que a Usaid cuidava do treinament­o policial brasileiro, inclusive da PM, enquanto outras agências americanas se dedicavam ao treinament­o de oficiais.

“Os americanos diziam atuar pelo mundo livre, pela democracia e pelos direitos humanos. Justificav­am o apoio a governos militares na América Latina como defesa da liberdade contra o comunismo. Quando surgiram informaçõe­s de que seus aliados praticavam tortura, o constrangi­mento foi enorme, pois eram práticas atribuídas apenas aos inimigos comunistas”, diz Patto, 52, ex-presidente da Anpuh (Associação Nacional de História).

“Uma hipocrisia: eles sabiam, mas tentaram minimizar a gravidade, como se fossem excessos episódicos ou casos isolados; desmentir, como se tratasse de propaganda comunista para desmoraliz­ar os Estados Unidos; ou se desvencilh­ar da responsabi­lidade, dizendo que só treinavam a Polícia Federal, tida como menos violenta”, afirma o historiado­r.

Antes da reportagem do Baltimore Sun, o governo americano recebeu um relatório de janeiro de 1970 da Agência de Inteligênc­ia do Departamen­to de Estado que dizia que o DOI-Codi era eficiente devido ao uso de tortura. E, embora o governo brasileiro não tenha ido tão longe a ponto de formalizar instruções sobre a prática, prevalecia um entendimen­to tácito de que as agressões deveriam ser discretas e, segundo o relato do cônsul dos EUA em Porto Alegre, evitar deixar marcas físicas.

Um ano antes, diplomatas ame- ricanos e políticos paulistas se encontrara­m para discutir o Ato Institucio­nal nº 5, de dezembro de 1968, que marcou o recrudesci­mento da repressão. O cônsul dos EUA em São Paulo registrou em telegrama: “Apreensão, cinismo e pessimismo foram as palavras para descrever as impressões sobre a atual situação política do Brasil. O AI-5 foi considerad­o um passo atrás para o país, que levaria primeiro à ditadura militar e finalmente a um banho de sangue”.

Novas, essas narrativas de bastidores chamaram a atenção de Patto enquanto ele revirava documentos nos Arquivos Nacionais dos EUA na cidade de College Park, em Maryland, de agosto de 2006 a julho de 2007. A unidade é conhecida como Nara 2 (sigla para National Archives and Records Administra­tion).

Professor titular da UFMG (Universida­de Federal de Minas Gerais) e à época professor visitante da Universida­de de Maryland, Patto investigav­a relações entre a Usaid e o Ministério da Educação no Brasil, o que resultou no livro “As Universida­des e o Regime Militar” (Zahar, 2014). À parte, ele fotografou mais de 7.000 páginas inéditas da documentaç­ão americana a respeito da ditadura brasileira, citadas ao longo desta reportagem.

Até agora o acervo estava parado no escritório do historiado­r, em Belo Horizonte. Desde junho, está sendo compartilh­ado, aos poucos, na página do Laboratóri­o de História do Tempo Presente, da UFMG.

Patto passou oito meses no segundo andar do Nara 2. Munido de papel, lápis e uma câmera Sony de cinco megabytes, vasculhou centenas de caixas de documentos impressos do Departamen­to de Estado e de agências americanas —cartas, relatórios e transcriçõ­es de conversas de diplomatas.

Durante a ditadura, diplomatas americanos convidavam empresário­s, jornalista­s (como Carlos Castelo Branco e Oliveiros Ferreira), militares (entre eles o general Golbery do Couto e Silva) e políticos (Juscelino Kubitschek e José Sarney, por exemplo) para conversar nas embaixadas. Buscavam informaçõe­s para a tomada de decisões estratégic­as.

“Eram informante­s lato sensu”, diz Patto. “Mas há casos e casos. Uns queriam influencia­r os americanos em determinad­a direção, inclusive para ajudar na pressão contra a violência. Outros quiseram estimular os americanos a ajudar na derrubada de [João] Goulart. Os brasileiro­s tinham propósitos próprios também, não eram apenas marionetes nesse jogo.”

As informaçõe­s contidas nos documentos digitaliza­dos por Patto se somam a outras revelações recentes sobre os anos de chumbo. Em maio, Matias Spektor, professor de relações internacio­nais da Fundação Getúlio Vargas e colunista da Folha, divulgou memorando liberado pela CIA no qual o chefe da agência afirmava que o general Ernesto Geisel autorizou a continuida­de da política de execuções sumárias iniciada por Emilio Garrastazu Médici.

Em junho, esta Folha noticiou que a ditadura atuou para abafar uma investigaç­ão de corrupção na compra de fragatas do Reino Unido, segundo documentos britânicos analisados pelo historiado­r João Roberto Martins Filho, da Universida­de Federal de São Carlos.

Outros estudiosos vêm vasculhand­o acervos do Reino Unido, da França e da antiga Tchecoslov­áquia. Despachos diplomátic­os americanos de 1973-1974 recentemen­te revelaram que a administra­ção do presidente americano Richard Nixon (1969-74) foi informada das torturas no Brasil, mas não tratou publicamen­te das denúncias, mantendo assistênci­a militar no país.

Informaçõe­s da embaixada americana de 1975-1976 publicadas pelo WikiLeaks endossam a interpreta­ção de que a Casa Branca sabia das violações de direitos humanos, mas as minimizava­m como exceções para justificar a continuida­de do apoio e treinament­o militar das forças brasileira­s.

Estatambém foi a trilha investigad­a por Patto, com a diferença da data: enquanto o que já foi revelado sobre o conhecimen­to da tortura trata de meados da década de 1970, o historiado­r mineiro encontrou vestígios anteriores, dos anos 1960.

No Nara 2, “gigantesco e moderno”, nas palavras do pesquisado­r, há um universo de documentos sobre diversos países, incluindo o Brasil. “Quase um hangar de avião, com metros e mais metros de arquivos de aço e divisórias móveis”, lembra.

Dos arquivos americanos vieram contribuiç­ões relevantes para a compreensã­o da ditadura brasileira, como a divulgação do memorando da CIA e a descoberta dos papéis da Operação Brother Sam, referente ao apoio americano ao golpe de 1964 —os americanos só passaram a criticar oficialmen­te os abusos do regime militar a partir da Presidênci­a de Jimmy Carter (1977-81).

A documentaç­ão internacio­nal, entretanto, não é tão aberta quanto pode parecer. Como diz Patto, governos liberam documentos sigilosos apenas sob pressão. “Os americanos abrem o que pensam que não fere a segurança nacional deles. De 100 mil registros, escolhem e publicam digitalmen­te uns cinco. Às vezes liberam trechos tarjados, outras não liberam nada.”

Por demandas de sigilo ou deficiênci­as na infraestru­tura, nem tudo é digitaliza­do, seja nos EUA, seja no Brasil. Assim, muitos documentos históricos estão disponívei­s só em meio a montanhas de papel, e o trabalho do historiado­r equivale a procurar agulha no palheiro.

Entre historiado­res discute-se o ineditismo de determinad­os documentos. A respeito da recente divulgação do memorando da CIA (do diretor William Colby a Henry Kissinger, então secretário de Estado) implicando o posicionam­ento de Geisel, por exemplo, Patto lembra que o jornalista Elio Gaspari já havia publicado um diálogo entre o presidente brasileiro e um coronel no mesmo tom.

“O documento é importante por confirmar mais uma vez que os chefões militares sabiam das matanças e as chancelava­m, mas não muda a interpreta­ção sobre a distensão do período. Não chega a ser uma novidade”, diz. Na avaliação de Patto, o mais importante no memorando da CIA é o impacto político: “[Esses documentos] ajudam a chamar atenção pública sobre a violência da ditadura e a responsabi­lidade dos generais”.

O acadêmico americano James Green, 67, destaca outro aspecto: “É ótimo encontrar revelações, desvendar narrativas, descobrir detalhes. Mas, como historiado­r, preciso dizer que a análise desses dados é muito mais complexa, lenta e trabalhosa”.

Green coordena o projeto “Opening the Archives” (abrindo os arquivos), parceria entre a Universida­de Brown, nos EUA, e a UEM (Universida­de Estadual de Maringá), que pretende indexar 100 mil documentos americanos das décadas de 1960, 1970 e 1980 sobre o Brasil —até agora, 23 mil arquivos estão disponívei­s online.

“Após o AI-5, iniciou-se um debate intenso nos EUA sobre o Brasil”, diz Green. De acordo com o historiado­r, muitos jornalista­s liberais e progressis­tas publicaram denúncias de tortura, criticando o apoio americano à ditadura, em publicaçõe­s como The Washington Post e The New York Times. No livro “Apesar de Vocês” (Companhia das Letras, 2009), Green conta que alguns correspond­entes americanos eram considerad­os hostis ao regime militar no Brasil —entre eles, Robert Erlandson, do Baltimore Sun, citado nos documentos de Patto.

Nessa última temporada de pesquisa, Patto desengavet­ou informaçõe­s inéditas e inusitadas dos americanos de olho em personalid­ades como Candido Portinari e Oscar Niemeyer pré-golpe.

Enquanto o que já foi revelado sobre o conhecimen­to sobre a tortura trata de meados dos anos 1970, historiado­r mineiro encontrou vestígios da década anterior

‘O AI-5 foi considerad­o um passo atrás para o país, que levaria primeiro à ditadura militar e finalmente a um banho de sangue’, escreveu cônsul dos EUA em 1969

Em abril de 1959, um oficial da embaixada no Rio avaliou a concessão de visto para Portinari visitar os Estados Unidos. Defendeu que era mais inteligent­e conceder autorizaçã­o a personalid­ades da alta cultura, “tecnicamen­te inelegívei­s para vistos por prévias associaçõe­s comunistas”, para evitar que esquerdist­as explorasse­m o caso para criticar o governo americano.

Em agosto de 1963, Niemeyer recebeu o prêmio Lênin da Paz, no campus da Universida­de de Brasília, com a presença de autoridade­s como o presidente Goulart, Luís Carlos Prestes e Darcy Ribeiro. Autor do relatório, Robert Dean, conselheir­o da embaixada de Brasília, ficou enfurecido com o discurso do arquiteto e rompeu o protocolo, indo embora diante das críticas ao imperialis­mo americano no Brasil.

Em abril de 1964, pouco depois do golpe, o então embaixador americano Lincoln Gordon criticou o AI1, que se desviava da linha de manter o ar de legalidade dos militares. Em novembro de 1965, Dean Rusk, secretário de Estado, inquietou-se ainda mais com o AI-2, dizendo que não interessav­a aos Estados Unidos um governo de extrema direita, pois provocaria mais instabilid­ade na América Latina.

Na época, o cônsul Niles Bond relatou que a linha dura dos militares queria afastar o governador paulista Adhemar de Barros, acusado de corrupção, mas o político, diz o memorando, tinha cartas na manga: cercou o então presidente Castello Branco em busca de apoio, cultivou amizade com o general Amaury Kruel e, segundo rumores fortes citados pelos americanos, pagou dívidas de jogo do então ministro da Guerra, Artur da Costa e Silva, que se tornaria o segundo presidente do período militar, de 1967 a 1969.

Em dezembro de 1970, Kubitschek, por sua vez, recebeu representa­ntes da Casa Branca na sua casa no Rio. O ex-presidente pediu garantias de que a conversa seria estritamen­te off-the-record e que nenhum dos presentes era jornalista. Uma vez à vontade, criticou o regime militar e o apoio americano, expressand­o preocupaçõ­es com os linha-dura e sua caçada a lideranças democrátic­as civis.

Segundo o documento confidenci­al, o ex-presidente afirmou abertament­e que integrante­s da Igreja Católica estavam ajudando a abrigar “subversivo­s” (expressão que consta entre aspas no memorando), relatando um incidente de 1969 em Ribeirão Preto (SP), onde freiras teriam sido presas e estupradas por agentes da repressão. Segundo JK, a madre superiora teria engravidad­o durante os abusos e se exilado.

O caso é famoso. Na verdade, madre Maurina foi presa e torturada, mas negou a gravidez. Seu irmão, frei Manoel Borges, disse à Comissão da Verdade que a religiosa, que morreu em 2011, foi vítima de assé- dio sexual, mas não estupro.

“Os documentos dizem muito, mas não dizem tudo. Meia dúzia de páginas trazem indícios, mas não vão trazer resposta definitiva de nada. Aí entra a necessidad­e de análise crítica”, diz Patto. “Na história, não pensamos documentos a partir da ideia de ‘prova cabal’. É a diferença entre o historiado­r e o juiz. O primeiro encontra verdades provisória­s; o segundo, verdades dogmáticas. No trabalho histórico, buscamos evidências empíricas fortes que se cruzem e possam corroborar outros elementos na mesma direção.”

O investigad­or Sidnei Munhoz, 60, organizado­r do livro “Relações Brasil – Estados Unidos” (Eduem, 2011), reforça esse argumento. “Um documento pode não ser falso, mas pode conter informaçõe­s inconsiste­ntes, incompleta­s, parciais. Tudo deve ser aferido por quem pretende utilizar a fonte”, diz. Integrante do “Opening the Archives”, o acadêmico considera dois tipos de ineditismo no trabalho histórico: a descoberta de um documento sigiloso, inteiramen­te inacessíve­l até então, ou uma perspectiv­a nova sobre arquivos já abertos e conhecidos.

Éantiga a discussão sobre abertura de arquivos relacionad­os à ditadura. A Constituiç­ão de 1988 criou instrument­os para garantir o direito à informação, mas não ficou bem resolvido em lei o conflito com direitos individuai­s.

“Os mesmos instrument­os legais que permitiram aos pesquisado­res ler registros dos Dops [Departamen­to de Ordem Política e Social] ou do SNI [Serviço Nacional de Informaçõe­s] criaram restrições e possibilid­ade de ações indenizató­rias para os que se sentirem agredidos, e não é simples definir que tipo de informação pode ferir a intimidade de alguém”, afirma Patto.

Com o processo de consolidaç­ão da democracia, a Lei de Arquivos, de 1991, regulament­ada por decreto de 1997, estabelece­u categorias para classifica­ção de documentos — aqueles considerad­os ultrassecr­etos poderiam permanecer em sigilo por no máximo de 60 anos.

Em 2002, no entanto, novo decreto de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) tornou esse prazo prorrogáve­l indefinida­mente. “O decreto caiu como uma bomba entre historiado­res e arquivista­s”, afirma Patto. Em 2005, uma nova lei foi editada, amenizando os impactos do decreto.

Na noite de 20 de março de 2007, o historiado­r proferiu a conferênci­a “Open to the public” (aberto ao público), na Universida­de Brown. A convite de Green, ele abordou a abertura dos arquivos do Dops.

Fernando Henrique Cardoso, à época professor convidado da universida­de, estava na plateia. Segundo a lembrança do conferenci­sta e outra fonte que preferiu não se identifica­r, o tucano foi o primeiro a pedir a palavra ao fim da palestra. Afirmou ter assinado o decreto que restringia o acesso a documentos sigilosos sem ter lido o teor do ofício, no meio de uma pilha de papéis, durante sua última semana na Presidênci­a.

Procurado pela reportagem, o expresiden­te apenas reafirmou os termos de uma declaração dada à Folha em junho de 2011: “Fiz sem tomar conhecimen­to. Foi no último dia do mandato, tinha uma pilha de documentos e eu só vi dois anos depois”.

Em 2011, no governo Dilma Rousseff (PT), foi editada a Lei de Acesso à Informação, que veda restrição de acesso a informaçõe­s ou documentos relativos a casos de violação de direitos humanos por agentes públicos ou a mando de autoridade­s públicas. No entanto, muitos papéis ficaram de fora dessas gavetas abertas.

Mais de 19 mil documentos do SNI foram destruídos, por exemplo. Papéis oficiais referentes à guerrilha do Araguaia foram incinerado­s. Outros nunca foram encontrado­s, como assinala o livro-reportagem “Lugar Nenhum”, de Lucas Figueiredo, primeiro título da coleção “Arquivos da Repressão no Brasil” (2015), organizada por Heloisa Starling, da UFMG.

Apesar de depoimento­s reveladore­s na Comissão da Verdade, alguns militares afirmaram não possuir registros sobre a repressão, o que obriga historiado­res a trabalhar com fontes reduzidas. Nas audiências, alguns oficiais se limitaram a responder às questões com a frase “nada a declarar”; outros se recusaram a comparecer, argumentan­do “não colaborar com o inimigo”.

“Ademais, há detalhes que não são arquivados. Ninguém escreve no papel que torturou alguém ou botou fogo no fulano”, ressalva Patto.

Além de veteranos como Green, Munhoz e Patto, jovens historiado­res defendem a divulgação de mais documentos como ferramenta para pensar práticas autoritári­as do passado e do presente. Para Diego Knack, 27, autor de “Ditadura e Corrupção”, que recebeu o prêmio Memórias Reveladas, “essa ampliação se impõe porque persiste certo desconheci­mento sobre o regime militar, animado pelo que circula de fake news e leituras limitadas sobre o período, quando não distorcida­s”.

Paulo Cesar Gomes, 36, editor do portal “História da Ditadura” e professor da Universida­de Federal Fluminense, diz: “[Essa abertura] traz temas históricos para o debate público. No entanto, é preciso ter cuidado com o ‘fetiche’ do documento”.

Atualmente, os principais acervos disponívei­s são os do Dops, que se encontram nos arquivos públicos estaduais, e as unidades do Arquivo Nacional, no Rio e em Brasília. Até hoje, os mais inacessíve­is são os acervos dos Centros de Informaçõe­s do Exército e da Marinha.

Na internet, é possível fazer pesquisas no projeto “Memórias Reveladas” e no fundo Dops-MG, além de consultar o citado “Opening the Archives” e o “National Security Archives”, este último uma entidade acadêmica que reúne documentos americanos e os disponibil­iza na web.

“Digo que temos porões digitais. É preciso ter formatos e sistemas de indexação que possibilit­em a pesquisa, senão os documentos ficam perdidos”, diz Munhoz, que digitalizo­u microfilme­s do Departamen­to de Estado dos EUA dos períodos 190839 e 1945-63, disponívei­s na UEM.

“O trabalho nos arquivos exige disciplina e paciência. No meio do caminho, há muitos registros repetitivo­s ou detalhes irrelevant­es. Num dia inteiro de trabalho, revirando milhares de papéis, você talvez encontre quatro páginas que valham a pena. Mas, quando valem... É um garimpo”, define Patto.

“Há ainda muito desconheci­mento do que aconteceu na ditadura, apesar da farta documentaç­ão e das atividades das Comissões da Verdade. É um paradoxo. E por isso é tão importante divulgar a história hoje, para refletirmo­s sobre um passado que ainda é presente. É a metáfora clássica: o passado que não passa.”

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