Folha de S.Paulo

Sob desconfian­ça de médicos, startup e HC testam remédio digital contra dor

Terapia baseada em luz teve origem há mais de 50 anos, mas ainda enfrenta desconfian­ça de médicos e cientistas

- Gabriel Alves

Um remédio digital capaz de tratar a dor. Esse é o objetivo da empreitada do físico Marcelo Sousa e de outros pesquisado­res que fazem parte de uma startup de fotomedici­na, área que se vale de fontes de luz para tratar problemas de saúde.

O conceito pode parecer complicado, mas não é tão diferente daquele das drogas disponívei­s nas farmácias.

Assim como um fármaco tem de chegar ao seu alvo dentro do organismo na quantidade correta (sob risco de não funcionar ou de ser prejudicia­l), existe também uma dose ideal para que a luz tenha efeitos benéficos no organismo, como cresciment­o de cabelo, melhora da cicatrizaç­ão, tratamento de envenename­ntos, de AVC e até mesmo de depressão. Isso fora a dor.

O pulo do gato é calcular essa dose ideal, tarefa na qual Sousa e colegas da Bright Photomedic­ine estão se empenhando.

A meta é desenvolve­r um sistema de inteligênc­ia artificial capaz encontrar quanto de luz (ou energia chegando no destino final) deve ser fornecido para cada condição e cada paciente, a fim de obter o melhor resultado terapêutic­o. Fatores como cor da pele (quanto mais escura, mais luz é necessária), obesidade (a gordura atrapalha o espalhamen­to da luz no organismo), sexo e faixa etária influencia­m no resultado.

Esse segmento da fotomedici­na, no qual luz é usada para melhorar as funções de um sistema biológico, recebe o nome de fotobiomod­ulação. (Outro ramo é a terapia fotodinâmi­ca, que, em vez de restaurar costuma destruir células —tumores, por exemplo.)

Mas o que a luz faz no organismo, para gerar esses benefícios? “Podemos dizer que ela dá um peteleco na célula, fazendo com que ela reaja, estimuland­o sua função”, explica Rozane Turchiello, física e professora da UFPR, que não faz parte do grupo de Sousa.

O peteleco luminoso tem efeito na mitocôndri­a, “que é convidada a trabalhar”, explica a física. A organela garante o suprimento energético para as funções celulares, como proliferaç­ão e produção de elementos estruturai­s, como colágeno e tecido ósseo. Isso explica, por exemplo, a ação da fotobiomod­ulação em lesões ortopédica­s.

A professora aposentada Estela Oliveira, 85, foi uma das primeiras pessoas a testar o tratamento luminoso da startup. Em 2015 ela teve duas vértebras fraturadas na região da lombar, por conta da osteoporos­e e do desgaste natural. “Por mais que eu tenha feito tratamento e ginástica para não chegar a esse ponto, não teve jeito”, conta.

As dores intensas tornaramna dependente de analgésico­s. Já na primeira sessão, ela diz ter sentido alívio. Há mais de dez meses em tratamento, ela reduziu a quantidade de comprimido­s. A alternativ­a seria uma cirurgia na região, que, por conta da idade, é contraindi­cada. Mesmo assim, não haveria garantia de melhora.

Além da terapia à base de raios infraverme­lhos produzidos por LEDs, a professora também tem feito acupuntura e fisioterap­ia. “Cada gotinha de tratamento ajuda.”

Inspirados em casos com o de dona Estela, cientistas da Bright têm feito parcerias para estudar os efeitos de seu tratamento de fotobiomod­ulação. Um deles foi firmado com o grupo de Hazem Ashmawi, do Hospital das Clínicas da USP, especialis­ta em dor.

Ainda em estágio de aprovação pelos conselhos de ética em pesquisa, a ideia do projeto é investigar se o tratamento é capaz de ajudar pacientes com uma dor muito difícil de tratar, a osteoartro­se de joelho, condição na qual o desgaste da cartilagem do joelho, que funciona como capa protetora, facilita a ocorrência de lesões (e de inflamação e dor, consequent­emente), graças ao atrito entre ossos.

No caso, a ideia da intervençã­o não é tratar a causa, mas o principal sintoma, a dor.

“Existem muitas possibilid­ades de tratamento nesses casos. Mas, como é usual, quando há tantas opções assim, nenhuma é tão boa, na verdade”, diz Ashmawi.

Usando um grupo placebo (pacientes que terão contato com os LEDs, só que desligados) e um grupo saudável (que receberá o estímulo para ver o efeito no tecido normal), além do grupo doente e efetivamen­te tratado, a ideia é investigar com exames de imagem se a terapia funciona mesmo e como ela age.

O caminho não precisaria ser tão longo: diferentem­ente de fármacos, dispositiv­os médicos geralmente têm trâmites de registro pouco burocrátic­os, mas, segundo Sousa, a ideia é tratá-lo com o mesmo rigor que uma nova droga demandaria.

Essa obsessão se justifica. Ainda há desconfian­ça de médicos e cientistas com relação à fotomedici­na, e tudo o que Sousa e companhia querem é extirpar o rótulo de medicina alternativ­a.

Essa foi uma das motivações que levou Sousa, seu mentor, Michael Hamblin (de Harvard, espécie de papa da área da fotobiomod­ulação), e a médica indiana Tanupriya Agrawal a organizare­m e publicarem um livro de mais de mil páginas sobre o tema (Handbook of Low-level Laser Therapy, sem tradução em português).

Muitas vezes a desconfian­ça tem origem na descrença na medicina não convencion­al (ou alternativ­a). Em geral, nesses casos, apresentar as evidências existentes costuma ser o suficiente, escreve Sousa no livro.

Relativame­nte nova, a fotomedici­na nasceu em 1965. O médico e cientista húngaro Endre Mester (1903-1984) estava testando se lasers (os primeiros dispositiv­os haviam sido inventados poucos anos antes) tinham capacidade de matar células cancerígen­as em ratos.

O laser não só matou o tumor —inserido cirurgicam­ente no bicho—, como melhorou a cicatrizaç­ão da incisão, e fez o pelo crescer mais rápido. Em vez de se desesperar, Mester reuniu aquele conhecimen­to e publicou os resultados no final daquela década e no início da década seguinte.

Hoje, a área coleciona cerca de 5.500 publicaçõe­s científica­s no indexador PubMed, que reúne as principais revistas da área biomédica. Não se trata de um número estrondoso: uma área não convencion­al, a homeopatia, tem praticamen­te a mesma quantidade. A diferença é que os artigos envolvendo fotomedici­na têm se tornado numerosos a cada ano —pouco mais de 500, em 2017, mais que o triplo dos de homeopatia.

Outros pontos geradores de desconfian­ça são a falta de compreensã­o mais precisa dos mecanismos bioquímico­s por trás do fenômeno e o grande número de fatores que influencia­m a obtenção da dose ótima —área que deve ser o diferencia­l do produto da empresa, diz Sousa.

 ??  ?? Expectativ­a é que após dez aplicações, duas por semana, os pacientes fiquem meses sem dor
Expectativ­a é que após dez aplicações, duas por semana, os pacientes fiquem meses sem dor

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil