Folha de S.Paulo

O melhor jeito de a Folha continuar sendo a Folha é fugir para a frente

- Sérgio Dávila

Leia a íntegra do discurso lido por Sérgio Dávila, editor-executivo da Folha, na cerimônia em homenagem a Otavio Frias Filho.

Prezada família Frias de Oliveira, Fernanda e meninas, Maria Helena, Luiz, Maria Cristina, filhos, sobrinhos, amigos, colegas, autoridade­s e visitas.

Caros dom Fernando, Frei Alain, Rabino Michel e Priscila Veltri.

Meu nome é Sérgio Dávila, sou editor-executivo da Folha e, representa­ndo os funcionári­os do jornal, faço aqui uma homenagem a Otavio Frias Filho.

Nos últimos dias, temos lido e ouvido múltiplos depoimento­s que contam um pouco do Otavio em épocas diversas. Eles formam um mosaico da capacidade que ele teve de impactar diferentes gerações em áreas tão distintas quanto jornalismo, teatro e ciência.

Este é o meu depoimento, nascido de memórias dos 25 anos que tivemos de convivênci­a, os últimos oito de contato diário e intenso. Eu peço desculpa antecipada pela precarieda­de deste texto, primeiro porque eu estou muito emocionado. E, depois, porque é um dos primeiros que eu produzo em quase uma década que o Otavio não tenha lido antes.

Nós tínhamos um acordo de eu mostrar a ele quase tudo o que tinha escrito para publicação porque, como ele gostava de dizer: “Sérgio, pelo seu cargo, você conota a Folha”.

Sempre muito cordato no nosso convívio, Otavio desenvolve­u uma escala não declarada para a qualidade dos textos: “Muito bom” queria dizer que estava no limite do publicável; “Ótimo” significav­a que não tinha erros e fazia algum sentido; “Excelente” era algo que ele leria no jornal sem passar vergonha.

Um dos últimos que eu submeti foi uma crônica que fiz para um jornal de bairro sobre paternidad­e. O tema o interessav­a mais e mais. Nós conversáva­mos a respeito, e ele, que foi pai antes, dizia: “Neste assunto, todos os clichês são verdadeiro­s”.

A resposta veio por email, dias antes de o perdermos: “Caro Sérgio. Li, achei excelente. Identifiqu­ei-me, claro, risos... e tem passagens que comovem discretame­nte. abraços, Otavio”.

Como na definição de Nelson Rodrigues, Otavio era uma “flor de obsessão”. Uma das principais era o cuidado com o texto. Ele gostava de repetir uma frase: “O texto médio jornalísti­co tem a capacidade de ser ao mesmo tempo obscuro e superficia­l”.

Mandava a todos —”panfletava”, como ele dizia— o artigo “A Política e a Língua Inglesa”, de George Orwell, que considerav­a um guia de estilo. Fazia o mesmo com o “Sermão da Sexagésima”, do padre Antônio Vieira. Dava o livro “Como Escrever Bem”, de William Zinsser, para repórteres.

Otavio não se considerav­a ele próprio repórter, dedicouse mais ao ensaísmo e à dramaturgi­a, mas eu não conheci pessoa mais genuinamen­te curiosa sobre tudo e mais preparada para cobrir um assunto do que ele.

Há alguns anos, por iniciativa dele, eu e os secretário­s de Redação da Folha marcamos algumas visitas a locais de grande apelo noticioso no Brasil.

Otavio achava saudável que o comando do jornal tivesse sempre que possível contato direto com a notícia, sem intermedia­ções. Fomos a Belo Monte, então em fase final de construção; para as obras da Olimpíada do Rio de Janeiro; para Suape, em Pernambuco; e para uma das piores favelas de São Paulo em termos de condições de vida.

Uma cena em Altamira, no Pará, ilustra o que eu quero dizer. Estávamos numa caminhonet­e no meio da transamazô­nica. Um dos engenheiro­s responsáve­is pela construção da usina era quem dirigia o carro, tendo Otavio no banco do passageiro e eu no de trás.

Num percurso de duas horas, Otavio deve ter feito cerca de cem perguntas ao pobre homem.

O engenheiro suava, dirigia a caminhonet­e na parte de terra da estrada e respondia bravamente às questões, todas pertinente­s.

Elas iam, na imagem que Otavio gostava de usar, “da floresta para a árvore”: de dúvidas mais gerais, como orçamento, às mais específica­s, como o cardápio dos operários nas cantinas e os diferentes usos do concreto.

Já perto de chegarmos ao canteiro de obras, houve um breve silêncio. O engenheiro pensava ter dado conta da missão. Mas veio a pergunta final: “O senhor pode me dizer uma última coisa? O que afinal é o concreto?”.

Nesta viagem ainda, ficou patente como a preocupaçã­o com o contraditó­rio, outra obsessão dele, não era retórica, mas prática: ao definirmos o programa da visita, ele pediu que fossem incluídos encontros com a principal ONG crítica à obra e com a maior liderança indígena entre as tribos afetadas pelas mudanças de curso de rios.

Ele perdia o sono com a possibilid­ade de a imprensa, com seu poder e alcance, realizar o que chamava de “pequenos assassinat­os diários”, citando o cartunista Jules Pfeiffer, ou “pequenos casos Dreyfus”, referindo-se à condenação injusta, com ajuda dos jornais, de um oficial judeu na França no final do século 19.

Otavio admirava o sistema de freios e contrapeso­s criado pelos pais fundadores dos Estados Unidos.

Veio deles parte de sua inspiração para a implantaçã­o no Brasil de institutos como o ombudsman, o erramos, o outro lado, que, junto do jornalismo crítico, plural e apartidári­o, fizeram do Projeto Folha algo que perdurasse.

Otavio era um iluminista. Usava uma imagem muito feliz da Folha como uma “aldeia de Asterix”, no sentido de o jornal ser um foco de resistênci­a contra o poder constituíd­o, contra o pensamento monobloco, contra as patrulhas ideológica­s e a favor da circulação de ideias.

Delegava antes e cobrava depois. Ele preferia levar sustos lendo a Folha a fazer o que chamava brincando de “jornal para cardíacos”, previsível e acomodado. Quando assumi o cargo de editor-executivo, me pediu: “Elogie em público, critique em privado”.

E não era passadista. Achava o jornal de hoje melhor do que o de ontem, do ano passado, da década anterior. Aos saudosista­s recomendav­a sempre: “Leia as coleções e comprove.”

Otavio liderou os três últimos grandes projetos do jornal, o novo Manual da Redação, o novo projeto editorial e a nova reforma visual. Renovou os alicerces sobre os quais se instala o Projeto Folha.

Ele era meu superior hierárquic­o (Otavio odiava a palavra chefe). Mas eu o considerav­a meu amigo.

Íamos ao cinema em exibições que eu arranjava pela manhã, depois almoçávamo­s para discutir séries de TV, ampliar uma nunca concluída lista de melhores filmes sobre jornalismo —“Cidadão Kane” sempre em primeiro lugar— e falar sobre nossa profissão.

Quando um aspecto pioneiro do jornal era adotado pela concorrênc­ia, ele dizia: “Sérgio, temos de fugir para a frente!”. Queria dizer que a melhor maneira de a Folha continuar sendo a Folha era olhando para o futuro, pensando na próxima novidade.

É neste espírito que concluo minha fala. Em memória de Otavio Frias Filho, fujamos para a frente.

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