Folha de S.Paulo

Decisão sobre Lula é de cumpriment­o obrigatóri­o

Brasil tem chance de mostrar respeito à democracia

- Cristiano Zanin Martins e Valeska T. Zanin Martins Advogados do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e representa­ntes dele perante o Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas

A natureza do pronunciam­ento emitido em 17 de agosto pelo Comitê de Direitos Humanos da ONU no caso do ex-presidente Lula é de decisão, e seu cumpriment­o é obrigatóri­o pelo Brasil, nos três Poderes. Lula não pode ser impedido de concorrer nas eleições de 2018, como decidiu a corte internacio­nal.

O mundo assistiu a diversas revoluções até que fosse possível chegar ao consenso de que o poder do Estado não é ilimitado. A criação da ONU, após a Segunda Guerra, buscou ir além e obter uma cooperação internacio­nal para promover e estimular o respeito aos direitos humanos, às liberdades fundamenta­is e às conquistas civilizató­rias.

O Pacto Internacio­nal de Direitos Civis e Políticos (PIDCP) é uma das peças de maior relevo dessa nova ordem mundial e foi adotado em 1966 pela ONU.

Na época, o Brasil vivia uma ditadura militar e, a pretexto de defender sua soberania, o país se recusou a aderir ao diploma internacio­nal que definiu, em caráter universal, as bases fundamenta­is das liberdades civis e políticas. Dentre elas, a impossibil­idade de estabelece­r “restrições infundadas” ao direito de votar e de ser votado (artigo 25).

Restabelec­ida a democracia e com uma nova Constituiç­ão vigente, que faz alusão expressa ao tema, o Brasil passou por diversas fases em relação aos direitos humanos. O país aderiu a diversos tratados internacio­nais sobre o assunto e, em 1992, internaliz­ou o PIDCP, sem ressalvas.

As decisões atuais do Supremo Tribunal Federal reconhecem o caráter universal dos direitos humanos e de sua interpreta­ção, além de admitir que as disposiçõe­s sobre o assunto inseridas em tratados internacio­nais no mínimo têm caráter supralegal (acima das leis ordinárias). Também reconhecem o caráter obrigatóri­o das decisões proferidas pelas cortes internacio­nais reconhecid­as pelo país.

O Comitê de Direitos Humanos da ONU insere-se exatamente nessa realidade após ter sido reconhecid­o pelo Brasil, de forma soberana e igualmente sem ressalvas, por meio do Decreto Legislativ­o 311/09. Na última semana, o presidente do Senado Federal, por meio de nota pública, reafirmou a plena vigência desse ato normativo.

Nessa realidade, em julho de 2016, juntamente com Geoffrey Robertson, levamos ao comitê um comunicado individual —expondo que Lula estava sendo vítima de uma cruzada judicial ilegítima com o objetivo de retirar seus direitos políticos. Mostramos, após diversos recursos rejeitados no país, que o expresiden­te não dispõe de remédios eficazes para paralisar as violações às suas garantias fundamenta­is. O comunicado passou por atualizaçõ­es, e o Brasil já se manifestou em três oportunida­des e em todas elas confirmou o compromiss­o com o sistema ONU e com o comitê.

A decisão do comitê coloca a necessidad­e de um “processo justo” em relação a Lula. Ela tem por objetivo evitar dano irreversív­el, a fim de preservar o pronunciam­ento final da corte internacio­nal.

Não conflita com a Lei da Ficha Limpa que, ademais, prevê a possibilid­ade de suspensão do impediment­o eleitoral provisório estabeleci­do em seu bojo antes da existência de decisão condenatór­ia definitiva (artigo 26-C).

Todo esse cenário, somado à impossibil­idade de se alegar qualquer disposição do direito interno para deixar de honrar seus compromiss­os internacio­nais, conforme dispõe a Convenção de Viena sobre os tratados internacio­nais (artigo 27) — da qual o Brasil também é signatário —, evidencia a força vinculante da decisão do comitê.

A responsabi­lidade internacio­nal é do Brasil e deve se sobrepor a qualquer orientação política ou a entendimen­to pessoal dos responsáve­is por dar cumpriment­o à decisão do comitê. O país terá a oportunida­de de mostrar ao mundo que respeita a democracia ou definitiva­mente assumirá que voltou no tempo e se utiliza das mesmas desculpas da ditadura para violar garantias fundamenta­is e as normas internacio­nais que se obrigou a cumprir.

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