Folha de S.Paulo

O Brasil ainda deve justiça às vítimas da ditadura

Lei de Anistia tornou-se um subterfúgi­o do Estado

- Paulo Branco Rogério Sottili Diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog

Entre 1964 e 1985, uma série de graves crimes contra a humanidade foram perpetrado­s por agentes do Estado brasileiro.

Vivíamos em um contexto de prisões arbitrária­s, sequestros, torturas, assassinat­os, desapareci­mentos forçados e terror na sociedade.

Esses agentes públicos, no entanto, nunca foram julgados. O tema ainda é, tanto tempo depois, uma das principais fontes de litígio entre o sistema internacio­nal de direitos humanos e o Estado brasileiro. E a Lei de Anistia assumiu papel central nessa disputa.

A Lei de Anistia completa 39 anos neste 28 de agosto. Ao longo dessas décadas, tornou-se evidente que a compreensã­o dominante até hoje no Brasil não é compatível com as normas internacio­nais de direitos humanos.

A interpreta­ção que prevalece nos tribunais nacionais até hoje considera que as graves violações de direitos humanos e crimes cometidos na ditadura são crimes políticos.

Essa leitura impede as investigaç­ões e garante a proteção aos torturador­es do regime militar. No entanto, esses crimes são, por natureza, imprescrit­íveis e inanistiáv­eis.

Como se não bastasse, a impunidade cristaliza­da na lei deixa um legado no imaginário coletivo que se traduz na tolerância à violência de Estado e no eventual reconhecim­ento da legitimida­de do uso desproporc­ional da força. É como se houvesse, no Brasil, uma licença para matar.

Não por acaso, forças de segurança ainda fazem uso dos autos de resistênci­a, que acobertam práticas cotidianas de uso excessivo da força, execuções extrajudic­iais e torturas.

Em plena democracia, cidadãos convivem com ações policiais e intervençõ­es militares que têm caracterís­ticas muito semelhante­s às dos aparatos de repressão da ditadura.

A desconstru­ção desse legado autoritári­o passa, necessaria­mente, por uma reinterpre­tação da Lei de Anistia, que permita à Justiça brasileira julgar e punir aqueles que cometeram crimes de lesa-humanidade.

O Judiciário brasileiro, liderado pelo Supremo Tribunal Federal, tem se esquivado de cumprir suas obrigações. Adequar-se ao sistema internacio­nal de direitos humanos e suas normativas é uma delas. O Estado que assume compromiss­os perante a comunidade internacio­nal e não os cumpre não é o tipo de Estado que queremos.

Recentemen­te, um tribunal internacio­nal —a Corte Interameri­cana de Direitos Humanos, ligada à Organizaçã­o dos Estados Americanos— condenou o Brasil pela falta de investigaç­ão e punição aos responsáve­is pelo assassinat­o de Vladimir Herzog (1937-1975).

A ausência de respostas do Estado brasileiro à família de Herzog —e às famílias de tantas outras vítimas da ditadura— sempre esteve escorada na anistia. Ou seja, a lei tornouse um subterfúgi­o.

A tarefa incompleta de se democratiz­ar o país é indissociá­vel da necessidad­e de se garantir justiça a todos que sofreram com a violência do Estado.

Uma nova interpreta­ção da Lei de Anistia, que esteja alinhada aos direitos humanos e às normativas internacio­nais, nunca foi tão necessária.

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