Folha de S.Paulo

Uma ideia em troca de dinheiro

Ser remunerado para defender uma posição, influencia­r e formar opinião é errado?

- Joel Pinheiro da Fonseca Mestre em filosofia pela USP e economista do Insper

“Influencia­dores digitais” (podemos ficar com o velho “formadores de opinião”) receberam pagamento para defender o PT em suas redes. Inicialmen­te, foilhes vendida a ideia de que se engajariam na promoção de pautas progressis­tas e apartidári­as que lhes seriam fornecidas rotineiram­ente. Em algum momento entre defender Gleisi Hoffmann e cantar loas ao governador do Piauí Wellington Dias, os mais inteligent­es entre eles devem ter percebido o claro viés político do esquema.

O esquema é, ademais, ilegal, pois viola as leis de financiame­nto de campanha. Quero, no entanto, discutir a ética dessa relação: receber dinheiro para defender uma certa posição. Desde que o esquema foi revelado, os “influencia­dores”, constrangi­dos, estão tendo que se explicar para o público. Mas afinal, há motivo para se explicar? Fizeram algo de errado?

O teor ideológico do que é defendido é o que menos importa aqui. A ideologia tem, na verdade, um papel perverso: ela justifica uma escolha que seria condenada em outros casos. A bondade da causa —os valores progressis­tas, o meio-ambiente, etc. — justifica a maleabilid­ade do caráter. Na prática, pessoas de direita e de esquerda usam dos mesmos artifícios e se deparam com os mesmos dilemas.

O filósofo conservado­r Roger Scruton, por exemplo, recebia pagamentos mensais da Japan Tobacco Internatio­nal no início dos anos 2000 para defender o cigarro na mídia. Quando a relação veio à tona em 2002, numa matéria do jornal The Guardian, Scruton perdeu espaço em diversas publicaçõe­s. Parece bastante perverso, não é? Não é pior do que os influencia­dores agora pagos para elogiar o PT.

A prática admite graus diversos. O mais obviamente grave é o de uma pessoa que aceita defender algo em que ela não acredita em troca de pagamento. Essa pessoa engana o público acerca de suas próprias crenças; trata-o com má fé. Mas há também aquela pessoa que recebe para defender algo no qual ela já acredita. Nesse caso, ela não está enganando ninguém; ao menos não à primeira vista.

O problema é que não somos intelectos puros que buscam a verdade desinteres­sadamente, avaliando argumentos e fatos de maneira imparcial. Na maioria dos casos —especialme­nte nos assuntos que importam para o sujeito— a razão tem um papel coadjuvant­e em definir nossas crenças e posições. Seguimos inclinaçõe­s do nosso temperamen­to, as tendências dos grupos a que pertencemo­s e, não raro, as posições de pessoas nas quais confiamos.

É difícil manter-se razoável em meio a todos os apelos para que se adote este ou aquele lado de maneira acrítica. Receber para defender um deles certamente terá impacto em nosso posicionam­ento: no mínimo, em nossa disposição para considerar argumentos contrários e para mudar de ideia. É por isso que a descoberta do vínculo monetário mina a credibilid­ade do formador de opinião. Ao não revelar esse fato ao leitor, ele trai sua confiança. Se o leitor soubesse, daria menos crédito ao que o formador de opinião escreve. É por isso que esconder o vínculo é parte importante do jogo.

O sonho da internet como um espaço aberto para o cidadão autônomo expressar sua opinião, enriquecer o debate público e aprender no processo revelou-se ingênuo. Jamais chegaremos ao ideal do espaço público democrátic­o e honesto. O que podemos fazer é combater as práticas que buscam pervertêlo intenciona­lmente, minando a confiança que podemos ter uns nos outros.

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