Folha de S.Paulo

No ato, atriz lê trechos de peças do jornalista

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Atriz que interpreto­u papéis criados por Otavio Frias Filho para o teatro, Bete Coelho leu, na cerimônia, trechos de “Rancor” (1993) e “Tutankáton” (1991), peças do diretor de Redação da Folha.

RANCOR

Leon Agora que os pingos estão postos nos is. Agora que está tudo bem. Agora que desaparece­ram os ódios e as ilusões. Agora que vai dar tudo certo. Agora que as ideologias estão mortas. Agora que a civilizaçã­o se tornou delicada. Agora que é pra sempre. Agora que ninguém tá mais aí, que ninguém quer saber e que… Agora que virou tudo uma festa, uma fornicação gigantesca que sempre se repete, agora que… Mas eu, eu que não fui feito para essas ocasiões esportivas, eu que carrego um peso tão escuro dentro de mim, que sofro vítima… vítima de uma lacuna, de uma falha, de uma falta, agora, então, já que tudo é legítimo, eu proclamo os meus direitos, eu não transijo nas minhas reivindica­ções: os meus desejos estão ardendo! Os meus sobressalt­os à noite, os suores solitários que eu tenho, a minha ambição exaltada, ardendo! “Agora o inverno do meu descontent­amento / Tornou-se glorioso verão pelo sol de York.” Porque agora é também a hora das oportunida­des mais… mais espantosas, dos lances de divino atreviment­o! No meio da pacificaçã­o geral, da aceitação de tudo por todos, enquanto todo mundo se distrai e se diverte, a coroa balança na cabeça dos velhinhos. Agora ninguém mais presta atenção, o mundo está quieto na sua pequena atividade inútil, mas isso agora, justo agora, só torna ainda mais turbulento e impaciente um coração como o meu.

TUTANKÁTON

Tutankáton Parece que vivi num sonho e que só agora, quando sinto o abraço gelado da morte, desperto e pela primeira vez contemplo a vida real que se esvai do meu corpo. Já não há espessuras turvas entre mim e as coisas que cintilam. O manto de palavras escorre como a água suja depois do banho. Apenas entramos e saímos de um mundo que já existia e continuará a existir depois. Vivemos na faixa estreita em que o fluido vivo frutifica, condenados a disputar a subsistênc­ia com a multidão de seres que se acotovelam em redor. Fora dessa faixa onde fervem criaturas, tudo é paz geométrica e mineral: ali vivem os deuses, mais próximos das algas marinhas do que dos animais selvagens, mais próximos destes do que do homem, o fantoche solitário da criação. Meu pensamento viaja por uma manhã de sol, há muitos anos, quando passeava de barco pelo rio. A brisa afasta o calor, e a luz tinge a água de um azul escuro e brilhante. Esse momento agora se expande e ocupa tudo o que fui, o que sou. Cada um tem a sua eternidade. Que importânci­a tem tudo isso, afinal? Nascemos e morremos — o que ocorre no meio é um nada, como se o tempo não tivesse passado ou passasse depressa demais para nós.

Vidente Uma geração substitui a outra, o sol se levanta, o sol se põe mais uma vez. As narinas de todos respiram o ar da manhã, até que o homem vá para o seu lugar de repouso. Ninguém pode voltar, ninguém diz o que nos espera. Por isso festeja, mortal, nos teus dias de vida, até que chegue o dia de chorar. Eu ouvi falar do que aconteceu com os meus antepassad­os: seus caixões estão vazios como caixões de mendigos, abandonado­s por todos na terra. Suas casas não os reconhecem mais, é como se nunca tivessem existido. Por isso festeja, mortal, nos teus dias de vida! Cobre o teu corpo com óleo perfumado, faz grinaldas de flores para os seios da tua amada. Aproveita a música, a bebida e os sorrisos, esquece toda dor até o dia em que o teu barco venha aportar nas praias do silêncio.

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Eduardo Knapp/Folhapress A atriz Bete Coelho durante leitura de trechos de peças de Otavio Frias Filho

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