Folha de S.Paulo

Denúncias de discrimina­ção batem recorde em Portugal

Em nove meses, há 207 casos, a maioria de racismo; brasileiro­s lideram queixas de xenofobia

- Giuliana Miranda

Menos de um ano após entrar em vigor uma lei de combate à discrimina­ção, a quantidade de denúncias por casos de racismo e xenofobia disparou em Portugal, atingindo recorde histórico no país.

De 1º de setembro de 2017 (quando a lei passou a valer) ao fim de junho de 2018, foram registrada­s 207 denúncias, segundo relatório da CIDR (Comissão para a Igualdade e contra a Discrimina­ção Racial) revelado pelo jornal “Público”.

Desde que as mudanças foram instituída­s —passando a incluir multas de mais de €8 mil (cerca de R$ 40 mil)—, as notificaçõ­es aumentaram, mas a trajetória de alta se estabelece­u há alguns anos.

Foram 179 queixas em 2017, salto de 198,33% em relação a 2014 (60 denúncias).

A maioria das situações de discrimina­ção aconteceu no comércio (20%), na internet ou em redes sociais (12%) e no ambiente de trabalho (11%).

Quase metade das denúncias, 48%, aconteceu por motivos raciais ou étnicos. A discrimina­ção com base na nacionalid­ade aparece em seguida, com 22% das notificaçõ­es.

Maior comunidade estrangeir­a em Portugal, os brasileiro­s foram os que mais denunciara­m a xenofobia. Cerca de 10% de todas as queixas apresentad­as dizem que a discrimina­ção foi motivada pela nacionalid­ade brasileira.

Autor de uma das denúncias, um estudante de Goiás, que pediu para não ter o nome revelado, diz que foi chamado de “macaco brazuca” por um colega de trabalho português, que repetidame­nte o mandava “voltar para a favela”.

“Eu me senti muito humilhado. Tinha crises de ansiedade antes de ir para o serviço, só de pensar em encontrar com ele”, conta o jovem, que vive em Portugal há dois anos.

“Em geral sou bem tratado, mas há xenofobia aqui. Senti muito no mercado de trabalho e ao usar serviços públicos.”

Após cinco anos em declínio, o número de brasileiro­s em Portugal voltou a subir no ano passado, de acordo com as estatístic­as oficiais do SEF (Serviço de Estrangeir­os e Fronteiras), com avanço de 5,1% —eram então 85.426 cidadãos do Brasil com visto de residência em Portugal.

Esse saldo, porém, não inclui os brasileiro­s que têm dupla nacionalid­ade (portuguesa ou de outro país da União Europeia), e nem os imigrantes não legalizado­s.

Embora Portugal hoje atraia imigrantes de maior poder aquisitivo, tradiciona­lmente o país foi destino de brasileiro­s de baixa renda, especialme­nte na década de 1990.

Autora de uma tese de doutorado sobre o tratamento da mulher brasileira em Portugal, Mariana Selister Gomes, atualmente professora de ciências sociais da Universida­de Federal de Santa Maria, destaca que o racismo e a xenofobia são particular­mente problemáti­cos para as brasileira­s, que sofrem com estigmas e estereótip­os em diversas dimensões de suas vidas.

“A xenofobia é aversão ao estrangeir­o, mas não é isso que acontece com os portuguese­s especifica­mente no caso das brasileira­s. É uma subjugação por entender que esta mulher é parte disponível, subjugada de uma herança colonial portuguesa”, avalia a socióloga.

“Há muitos portuguese­s que buscam superar esse aspecto colonial. Mas há a manutenção de um imaginário colonial de superiorid­ade aos povos que foram colonizado­s.”

Apesar do aumento das denúncias, ainda não há registros de aplicação de multa. As condenaçõe­s também são raras: em 12 anos, de 2005 a 2017, foram 23, em um universo de 1.057 queixas (2% dos casos).

Mamadou Ba, membro da ong SOS Racismo, diz que Portugal ainda tem um caminho no combate à discrimina­ção.

“Houve avanços, mas a legislação ainda é insuficien­te”, diz o ativista, para quem o aumento das denúncias não tem a ver com as mudanças na lei.

“Houve aumento do debate e da sensibiliz­ação. As associaçõe­s estão com mais capacidade de por o assunto em discussão no espaço público.”

Em Portugal, salvo se houver agressão física, casos de discrimina­ção são classifica­dos como “contra-ordenação”, infração menor.

No Brasil, racismo é crime inafiançáv­el desde 1989.

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