Folha de S.Paulo

Brasileira relata medo em prisão na Nicarágua

- Flávia Mantovani

“Estou com a mesma roupa que usava quando fui capturada. Faz três dias que não durmo”, diz Emilia Mello, 40.

Presa no sábado (25) na Nicarágua, a documentar­ista foi deportada no dia seguinte, após 30 horas de detenção.

Recém-chegada de viagem, ela contou o que aconteceu à Folha, por telefone, na segunda (27) à noite. Preferiu não revelar onde está, por razões de segurança.

Nascida e criada nos EUA, Emilia é filha de brasileiro­s, tem dupla cidadania e mora há quatro anos no Brasil. Ela estava na Nicarágua gravando um documentár­io para uma produtora americana sobre o movimento de oposição ao ditador Daniel Ortega que tomou o país desde abril.

Acompanhav­a um grupo de estudantes que se dirigia a uma manifestaç­ão na cidade de Granada quando foram parados pela polícia. “Éramos 20. Fomos sem bandeira, sem nada. Pegaram nossos telefones, meus equipament­os, tudo”, relata.

De ônibus, foram levados a um quartel. Segundo Emilia, ninguém do grupo foi informado do que eram acusados ou para onde estavam indo.

“Chegamos a esse lugar cheio de policiais com metralhado­ras”, descreve. Lá, a polícia tirou fotos e pegou os dados de todos, afirma.

Depois, o grupo foi transferid­o para o Chipote, prisão conhecida como centro de tortura de opositores.

“Ali, alguns estudantes tiveram certeza de que seriam mortos”, diz. Mas, após terem sido interrogad­os, foram liberados.

Ela foi encaminhad­a à imigração. Segundo Emilia, o governo alegou que ela “se envolveu em questões internas do país”.

Ela afirma que, na imigração, foi interrogad­a por cinco pessoas durante oito horas e que as imagens de sua câmera foram apagadas. Passou o dia todo sem comer e não teve acesso a advogado, conta.

“Pedi para entrar em contato com as embaixadas do Brasil e dos EUA, mas disseram que elas já tinham sido notificada­s e não estavam interessad­as no meu caso. Era um jogo, me ameaçaram o tempo inteiro dizendo que ficaria presa na Nicarágua.”

Disse, ainda, que foi pressionad­a para entregar todos os materiais que tinha guardado no lugar onde estava hospedada, mas se recusou e acabou deixando tudo para trás.

Para ela, o pior da experiênci­a foi não saber o que seria feito com eles.

“Eu sabia que, como estrangeir­a, a probabilid­ade de me matarem era menor, porque haveria repercussã­o internacio­nal”, diz.

“Mas o fato de eles nos levarem de lugar em lugar sem dar explicação foi aterroriza­nte. Eu realmente achei que íamos morrer.”

Emilia conta também que, durante a detenção, uma das estudantes teve convulsões, mas não recebeu atendiment­o. “Ela estava muito mal, mas a polícia não reagiu. Após muita insistênci­a, foi levada a um hospital.”

Todos do grupo foram liberados, mas ela acredita que poderia ter sido diferente se não houvesse pressão internacio­nal por sua soltura.

“Há estudantes presos em outros lugares que ainda estão detidos. São crianças, têm 19, 20 anos”, diz.

Não era a primeira vez que Emilia ia para a Nicarágua gravar o documentár­io. Agora, ela afirma que gostaria de terminar o trabalho. “Não está certo restringir­em a liberdade de expressão.”

As manifestaç­ões começaram em 18 de abril, contra uma reforma da previdênci­a, e acabaram se transforma­do em protestos que pedem a renúncia de Ortega e de sua mulher e vice, Rosario Murillo. A repressão aos protestos deixou pelo menos 317 mortos entre 18 de abril e 30 de julho, inclusive civis e menores de idade.

Em 23 de julho, a estudante brasileira Raynéia Gabrielle Lima, 31, foi morta a tiros em Manágua.

“O fato de eles nos levarem de lugar em lugar sem dar explicação foi aterroriza­nte. Eu realmente achei que íamos morrer

Emilia Mello, 40 documentar­ista brasileira

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Inti Ocon - 25.ago.18/AFP Protesto em Granada (Nicarágua) no sábado (25), para o qual ia Emilia Mello antes de ser detida
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