Folha de S.Paulo

Google abandona seus ideais de juventude

Na meia-idade, o gigante avalia se enquadrar à censura na China, trocando o lema ‘não seja mau’ pelo ‘caia na real’

- Christophe­r Mims The Wall Street Journal, traduzido do inglês por Paulo Migliacci

Todo mundo precisa amadurecer um dia. Para o Google, essa transição do idealismo da juventude para o realismo ranzinza da meiaidade está em curso.

A mais recente prova do pragmatism­o do Google, controlado pela holding Alphabet, é o projeto Dragonfly, uma versão do serviço de buscas que pode se enquadrar às normas de censura da China para que a empresa volte a oferecer esse produto no país, depois de suspendê-lo em 2010.

Esse não é o primeiro exemplo de transforma­ção do lema da empresa, “não seja mau”, para algo mais parecido com “caia na real”.

Nos últimos 12 meses, o Google precisou abandonar sua cooperação com o Departamen­to de Defesa americano em um projeto envolvendo sistemas de inteligênc­ia artificial em áreas militares —e a decisão de sair desse projeto também atraiu críticas.

O Google ainda se viu forçado a defender sua prática de rastrear a localizaçã­o de usuários que desligaram seus “serviços de localizaçã­o”, bem como a aparente falta de fiscalizaç­ão sobre desenvolve­dores que recebem acesso às contas de usuários do Gmail.

Além de irritar o público e legislador­es, essas práticas de negócios inspiraram reações adversas de parte dos empregados da companhia e colocaram em risco a capacidade de o Google recrutar os grandes talentos da tecnologia.

Os críticos internos e externos afirmam que abandonar a missão idealista que a empresa um dia se atribuiu poderia conduzir a usos ainda menos éticos de sua poderosa tecnologia.

Se a empresa não administra­r bem as prioridade­s, a disposição de confiar nela, da parte de seus empregados e clientes, poderia erodir, o que colocaria em risco seu cresciment­o.

“Quando você começa com uma empresa ética, apegada à sua missão, e remove a ética, isso cria um problema”, disse Tiffany Li, especialis­ta em leis de tecnologia e pesquisado­ra da escola de direito da Universida­de Yale.

“Se o Google tiver uma versão de seu serviço de buscas aberta à censura, para a China, outros países pedirão a mesma coisa”, afirmou.

Segundo Li, um Google cúmplice com leis que não se alinham às de seu país de origem normaliza o cerceament­o da liberdade de expressão em todo lugar em que operar.

Para compreende­r os motivos de o Google poder optar por abandonar os valores sobre os quais foi fundado, é importante observar o que seus líderes esperam obter em troca.

A empresa precisa enfrentar a estagnação no cresciment­o de vendas dos smartphone­s, mais concorrênc­ia na publicidad­e digital (com a Amazon, por exemplo), a regulament­ação europeia, que inclui uma multa recorde de US$ 5 bilhões (R$ 20,3 bilhões), novos apelos por regulament­ação nos Estados Unidos e a aprovação de uma lei abrangente de proteção da privacidad­e na Califórnia.

A companhia também enfrenta regulament­ação e novas leis protecioni­stas na Índia, e a ascensão de companhias de tecnologia capazes de concorrer na China.

Para as empresas ocidentais, é difícil conquistar espaço na China. Porém, existe mercado naquele país para um serviço de buscas como o do Google, mesmo que censurado, diz Rui Ma, investidor­a em startups.

O Baidu, gigante que domina o mercado de buscas chinês, é tão simpático aos anunciante­s que chega a promover desinforma­ção e spam, diz Ma.

Em 2016, as autoridade­s regulatóri­as começaram a agir contra o Baidu por sua inclusão de informaçõe­s enganosas em seus resultados de busca.

Segundo Ma, spam e resultados de busca ditados por publicidad­e “causam a maior parte das queixas do povo chinês sobre o Baidu”.

A censura não é a maior queixa, de acordo com relato do Baidu ao The Wall Street Journal no passado.

A missão declarada do Google é a de “organizar a informação do planeta e torná-la universalm­ente acessível e útil”.

Para quem exatamente o Google “organiza a informação do planeta” se permitir que o governo chinês dite o que é real? Qual seria o re- sultado da possível colaboraçã­o entre o Google e a chinesa Tencent nos serviços de computação em nuvem?

As duas empresas conversam há mais de um ano sobre um cenário no qual o Google obedeceria às leis chinesas para hospedar dados em servidores do país. Isso poderia significar não só que a empresa estaria exposta aos censores chineses, mas que sua tecnologia seria acessível diretament­e para o governo da China.

Não é algo que se restrinja ao Google e à China.

Na verdade, muitas outras empresas —entre as quais a Apple— encontrara­m maneiras de trabalhar com o país sem criar reações adversas entre seus clientes e empregados.

Toda empresa é motivada pelo lucro, mesmo que afirmem ter uma missão, mas, ao se impor a missão “não seja mau”, o Google criou um padrão mais elevado para suas operações. Abandonar esse princípio acarreta o risco de prejudicar sua marca.

Existe uma ironia no esforço do Google para reforçar seus negócios por meio de uma conversão à realpoliti­k. Muitas das pessoas mais brilhantes da tecnologia optam pela empresa não só pelas refeições de alta culinária e pelos salários generosos, mas pela missão idealista.

Caso a empresa deixe de lado essa missão, essas pessoas podem se sentir igualmente motivadas a sair.

Recentemen­te, Sundar Pichai, presidente-executivo do Google, disse ao pessoal da companhia que ela “não estava próxima de lançar um produto de busca” na China.

Um estudo da Universida­de Stanford sobre as preferênci­as políticas dos líderes do Vale do Silício os identifico­u como profundame­nte progressis­tas, mas divergente­s do Partido Democrata no que tange a direitos trabalhist­as e regulament­ação governamen­tal.

Os profission­ais da costa oeste americana começaram a se organizar para se opor aos seus empregador­es em relação a questões como o tratamento de trabalhado­res temporário­s.

Se o Google continuar no caminho que está seguindo, parece destinado a alienar seu pessoal existente quanto possíveis novos colaborado­res.

Em um setor no qual as maiores empresas crescem ao investir nelas mesmas e em sua tecnologia, a tentativa do Google de amadurecer significa entrar em um jogo perigoso, não só para a democracia mundial, mas para os lucros da empresa.

“Se o Google tiver uma versão de seu serviço de buscas aberta à censura, para a China, outros países pedirão a mesma coisa Tiffany Li pesquisado­ra da escola de direito da Universida­de Yale

 ?? Aly Song/Reuters ?? Oficial chinês passa diante de cartaz do Google; companhia trabalha no projeto Dragonfly, versão do serviço de buscas que pode se enquadrar à censura na China
Aly Song/Reuters Oficial chinês passa diante de cartaz do Google; companhia trabalha no projeto Dragonfly, versão do serviço de buscas que pode se enquadrar à censura na China

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