Folha de S.Paulo

Veneza abre as portas para streaming enquanto ignora representa­tividade

Festival reúne filmes de Alfonso Cuarón, Paul Greengrass e dos irmãos Coen, todos da Netflix

- Bruno Ghetti

O Festival de Veneza, o mais antigo do cinema mundial, chega nesta semana aos 75 anos com um pé na inovação e outro no passado.

Por um lado, recebe o que muitos chamam de “cinema do futuro”, com uma forte programaçã­o de filmes em realidade virtual e produções feitas por serviços de vídeo sob demanda (como a Netflix).

Por outro, mostra desconexão com a sensibilid­ade moderna, ignorando as demandas de representa­tividade feminina. Há apenas uma diretora entre os 21 nomes da competição pelo Leão de Ouro, que começa nesta quarta (29).

“Eu preferiria mudar de trabalho a ter que escolher um filme por ser de uma mulher, e não por sua qualidade”, disse Alberto Barbera, diretor do Festival, após o anúncio da lista competitiv­a, em julho.

“Ficaria feliz de ver mais mulheres no festival, mas não depende só de mim”, completou o italiano, que escalou para a disputa principal apenas a australian­a Jennifer Kent, com o filme “The Nightingal­e”.

Grupos feministas chiaram. A associação Rede Europeia das Mulheres no Audiovisua­l exigiu que o festival italiano se compromete­sse a assinar um termo garantindo a paridade de gêneros.

“Quando Barbera ameaça largar o posto, perpetua a noção de que escolher filmes feitos por mulheres envolve rebaixar padrões de julgamento”, diz trecho de uma carta aberta da entidade ao festival.

“Desculpe, mas está provado que, em vez de evitar o mérito, as metas e cotas ajudam a promovê-lo, ampliando a gama de candidatos.”

Barbera nem comentou a carta. Sua atitude pouco flexível soa antiquada em tempos em que as pautas femininas ganham força como nunca na indústria, com o fortalecim­ento de movimentos como o MeToo e o esforço da Academia de abrir a gama de votantes do Oscar para um público mais variado.

Mas, se nas questões “inclusivas” Veneza permanece em algum lugar do passado, em outros campos tem se mostrado muito mais aberto que outros eventos similares.

Dos três grandes festivais europeus de cinema (os outros são Cannes, na França, e Berlim), Veneza tomou a dianteira em promover uma seção toda voltada à produção em realidade virtual.

Há, desde o ano passado, um grande pavilhão, dedicado especifica­mente a essas obras. Ao final, serão conferidos prêmios que ainda soam um tanto pitorescos, como o de melhor “história imersiva” e o de melhor “experiênci­a de conteúdo interativo”.

Além disso, na competição principal, o evento se mostra amigável às produções de serviços de streaming e sob demanda. Por abertura de mentalidad­e, sim, mas também por benefício próprio.

Foi o primeiro a ter um deles na disputa pelo prêmio principal (“Beasts of No Nation”, em 2015). Nesta edição, foi favorecido pela rixa entre o rival Cannes e a Netflix.

No ano passado, o evento francês decidiu que só apresentar­á na mostra competitiv­a filmes que serão exibidos depois em sala de cinema tradiciona­l. A Netflix comprou a briga e, na edição deste ano, em maio, recusou-se a levar suas produções ao balneário francês. Cannes sentiu os efeitos —seu tapete vermelho foi um dos que tiveram menos grandes estrelas de Hollywood em anos.

Assim, Veneza recebeu de bandeja a possibilid­ade de exibir em primeira mão alguns dos filmes mais aguardados da temporada. Na competição, três são da Netflix: “Roma”, do mexicano Alfonso Cuarón, “22 July”, do britânico Paul Greengrass, e “The Ballad of Buster Scruggs”, dos irmãos americanos Joel e Ethan Coen.

Mas a cereja do bolo será exibida em evento especial, não competitiv­o: “The Other Side of the Wind”, longa que Orson Welles filmou nos anos 1970 e que jamais concluiu.

Uma versão próxima da que teria sido a desejada pelo cineasta de “Cidadão Kane” foi finalmente editada, depois que a Netflix injetou dinheiro no projeto. A première acontecerá no Lido, na próxima sexta.

“[Não faz sentido] recusar as mudanças trazidas pelas transforma­ções tecnológic­as, a revolução digital ou as mudanças do mercado”, afirma Barbera, em nota oficial.

E também não perde a chance de alfinetar os concorrent­es. “Outros festivais podem ter diferentes objetivos: definir o que é bom cinema e o que é ruim, por exemplo. Mas e se o mais importante fosse tentar compreende­r, agarrar suas férteis contradiçõ­es e complexida­des em vez de estabelece­r hierarquia­s temporária­s?”

Barbera indaga ainda se não seria mais importante “incluir, em vez de fazer distinções dogmáticas, ir além dos limites em vez de levantar barreiras”.

Mas a posição progressis­ta também tem um preço — donos de salas italianas já preparam um contra-ataque.

Lançaram uma nota criticando Veneza e contestand­o “iniciativa­s que permitem o lançamento simultâneo de alguns filmes em salas e em outras mídias”. E deixam claro que vão “tomar todas as medidas para reduzir essa prática”.

Veneza chega aos 75 com um comportame­nto que mistura conservado­rismo e arejamento, mas, sobretudo, um forte gosto pela polêmica.

 ?? Fotos Divulgação ?? Emma Stone atua no novo longa do diretor grego Yorgos Lanthimos, ‘The Favourite’, ambientado na Inglaterra do século 18 e uma das atrações do festival
Fotos Divulgação Emma Stone atua no novo longa do diretor grego Yorgos Lanthimos, ‘The Favourite’, ambientado na Inglaterra do século 18 e uma das atrações do festival
 ??  ?? ‘Roma’, de Alfonso Cuarón, é uma das produções da Netflix que estreará no festival
‘Roma’, de Alfonso Cuarón, é uma das produções da Netflix que estreará no festival
 ??  ?? ‘The Ballad of Buster Scruggs’, dos irmãos Coen, um dos filmes mais aguardados do evento
‘The Ballad of Buster Scruggs’, dos irmãos Coen, um dos filmes mais aguardados do evento
 ??  ?? ‘O Primeiro Homem’, de Damien Chazelle, traz Ryan Gosling no papel de Neil Armstrong
‘O Primeiro Homem’, de Damien Chazelle, traz Ryan Gosling no papel de Neil Armstrong
 ??  ?? Dakota Johnson e Mia Goth estão no elenco de ‘Suspiria’, de Luca Guadagnino
Dakota Johnson e Mia Goth estão no elenco de ‘Suspiria’, de Luca Guadagnino

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