Folha de S.Paulo

Análise Reinaldo J. Lopes

Além de itens do passado, coleções também ajudavam em pesquisas para a determinaç­ão de novas espécies

- Reinaldo José Lopes

O que foi tragado pelas chamas é incalculáv­el e jamais será substituíd­o

No caso do incêndio do Museu Nacional da UFRJ, todos os clichês normalment­e aplicados à perda do patrimônio científico e histórico estão corretos: o que foi tragado pelo fogo —pelo que se sabe até agora, o grosso das coleções, exposições e laboratóri­os do museu— tem valor incalculáv­el e jamais poderá ser substituíd­o.

Escrevo este texto com o incêndio ainda ardendo na Quinta da Boa Vista, o que significa que nenhuma contabilid­ade detalhada do que foi perdido pode ser feita.

No entanto, as dimensões do desastre e o dano generaliza­do ao prédio histórico já deixam claro que o acervo correspond­ente às áreas de arqueologi­a, paleontolo­gia, invertebra­dos e história do Brasil sofreu destruição total ou quase total.

A coleção de vertebrado­s, ao menos parte da de botânica e a biblioteca, localizada­s num prédio anexo mais distante, foram poupadas.

Consideran­do as coleções já destruídas pelo incêndio, o que pode ter se perdido?

Para começar, o ser humano mais antigo achado até hoje no Brasil. Trata-se do esqueleto da jovem apelidada de Luzia, que viveu em Minas Gerais há cerca de 12 mil anos, quando ainda existiam mastodonte­s e dentes-de-sabre no cerrado.

As feições singulares de Luzia e de outros habitantes da região de Lagoa Santa —que lembram mais as de aborígines da Austrália que a dos índios modernos— levaram antropólog­os brasileiro­s a postular duas ondas distintas de migração para as Américas no fim da Era do Gelo.

Muitíssimo mais antigos que Luzia são (eram?) os dinossauro­s e pterossaur­os (répteis voadores) descoberto­s por cientistas do museu, como o Maxakalisa­urus topai, dino herbívoro de 13 m de compriment­o. O museu tinha acabado de realizar uma vaquinha virtual para renovar a área de exposição do fóssil.

A instituiçã­o também era a casa da maior coleção de antiguidad­es egípcias da América Latina —700 peças que começaram a ser acumuladas em 1826, no reinado de Dom Pedro 1º. Havia estelas (monumentos que equivalem a postes de pedra), estátuas, caixões e múmias, oriundos principalm­ente das antigas cidades de Tebas e Abidos.

Além do mais, engana-se quem acha que a destruição, por mais lamentável que seja, afeta apenas um patrimônio que correspond­e basicament­e ao passado.

No que diz respeito a estudos sobre biodiversi­dade acervos são máquinas do tempo que viajam tanto para trás quanto para a frente.

Isso porque quem batiza formalment­e uma nova espécie de animal ou planta quase sempre deposita num museu o exemplar conhecido como holótipo, o indivíduo de referência para aquele tipo de ser vivo, que servirá de base de comparação para pesquisas de toda sorte no futuro.

A perda de um museu não só faz sumir esses exemplares de referência como complica muito a vida de quem gostaria de poder compará-los com possíveis novas espécies.

Isso, claro, sem falar nos exemplares que tinham chegado ao acervo e não haviam sido analisados —como há poucos cientistas especializ­ados nesse trabalho, a fila para descrição costuma ser grande.

Esse tipo de desastre afetará, duramente, quem ainda gostaria de poder examinar os 5 milhões de exemplares de insetos que estavam no museu —ou admirar o meteorito de Bendegó, um monstrengo espacial descoberto no sertão baiano em 1784 e levado para o Rio em 1888, quando Dom Pedro 2º ainda reinava.

O meteorito era o primeiro item do acervo que o visitante via ao entrar na instituiçã­o.

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