Folha de S.Paulo

Mathias Alencastro

Bolsonaro, como Le Pen, deseja apenas minar a democracia

- Mathias Alencastro Doutor em ciência política pela Universida­de de Oxford (Inglaterra) e pesquisado­r do Centro Brasileiro de Análise e Planejamen­to

A história da família Le Pen, fundadora da Frente Nacional (FN), é a história da reconversã­o da extrema-direita.

Jean-Marie Le Pen chegou ao segundo turno das presidenci­ais francesas em 2002. Mas jamais almejou a Presidênci­a. Defensor infatigáve­l do regime de Vichy, feudatário dos invasores nazistas na França, o seu único objetivo era quebrantar a legitimida­de do sistema democrátic­o restituído em 1944 pela Resistênci­a.

Uma década depois, sua filha, Marine começou a construir um projeto de poder a partir do núcleo de reacionári­os organizado pelo seu pai. Ela se cercou de quadros da elite meritocrát­ica, abriu as portas do partido para a diversidad­e e construiu pontes com o mercado.

Ícone dessa nova era, o seu “posto Ipiranga”, Florian Phillipot, é um admirador de Charles de Gaulle, patriarca da direita republican­a, formado na Escola de Nacional de Administra­ção, um viveiro de altos funcionári­os e executivos, e homossexua­l assumido, para desagrado de muitos eleitores do FN.

Numa tentativa de romper definitiva­mente com o passado, Marine expulsou Jean-Marie da formação que ele criou. Um parricídio de forte valor simbólico: o negacionis­mo do Holocausto, um dos estandarte­s do vetusto líder, era uma barreira insuperáve­l entre a FN e a maioria do eleitorado francês.

Em 2017, Marine repetiu o feito do pai e chegou ao segundo turno das presidenci­ais. Porém a sua aventura rapidament­e azedou.

Logo depois da sua derrota contra Emmanuel Macron, ela perdeu o controle sobre a extrema-direita, que regressou às suas pelejas tribais.

Não obstante o fiasco, Marine fez escola. Muitos líderes tentam replicar a sua trajetória na Europa e alhures.

Jair Bolsonaro, por exemplo, ensaiou seguir pelo caminho trilhado por Marine: buscou um vice-presidente da direita parlamenta­r, indicou um “posto Ipiranga” e se distancio das falas polêmicas do passado.

Porém, na semana passada, de forma abrupta e imprevista, ele se afastou do “Jairzinho paz e amor”, falou tudo e o seu contrário sobre economia e deu um show de truculênci­a no programa de maior audiência nacional.

Na família Le Pen, Jair escolheu ser Jean-Marie. Ele desistiu – se é que jamais teve – da ambição de governar o país.

A sua candidatur­a é motivada exclusivam­ente pelo anseio de sabotar a legitimida­de do sistema democrátic­o erguido depois da ditadura.

Porque o choque sistêmico importa mais do que o projeto de poder, tudo é permitido para chegar ao segundo turno. Isso explica a sua aposta numa campanha sectária e a sua indiferenç­a pela alta rejeição que ela provoca.

Em 2002, face a ameaça de Jean-Marie, a resposta dos franceses foi unânime e portentosa.

Mais de um milhão saíram às ruas. Todos os setores da sociedade declararam apoio ao seu opositor, Jacques Chirac. Uma barreira foi erguida unindo os votos da esquerda e da direita republican­a.

No segundo turno, JeanMarie não ultrapasso­u os 20% dos votos.

Resta esperar que os brasileiro­s reajam com a mesma tenacidade na eventualid­ade de um primeiro grande teste democrátic­o dessa natureza.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil