Folha de S.Paulo

A presunção de inocência frente à prisão processual

Garantias constituci­onais deveriam ser rede protetora

- Davi Depiné Mestre em direito processual penal pela USP e defensor público-geral do Estado de São Paulo

Em nossa Carta constituci­onal não há menção explícita ao princípio da presunção de inocência, mas ele exsurge de diversos preceitos contidos nos incisos do maltratado artigo 5º.

A expressa previsão de que alguém apenas pode ser considerad­o culpado após o trânsito em julgado de sentença penal condenatór­ia —contra a qual não cabem mais recursos— certamente é a noção mais evidente do referido princípio. Mas ele também se faz presente na exigência do devido processo legal, na garantia da ampla defesa, na excepciona­lidade da prisão anterior à condenação.

Tais princípios são produtos da evolução humana, de nossa racionalid­ade e de uma sociedade que se pressuponh­a garantidor­a e não violadora de direitos. No entanto, são preceitos contraintu­itivos, ou seja, sua observânci­a no mais das vezes exige um posicionam­ento oposto ao da reação automática, ao anseio imediato por justiça ou vingança.

Embora a inocência, presumida em favor de toda e qualquer pessoa acusada da prática de uma infração penal, ceda diante de uma decisão condenatór­ia definitiva, o sentimento que emana da coletivida­de nos mostra que essa realocação acaba por ocorrer bem mais cedo, antes mesmo da condenação em primeira instância, corporific­ando-se explicitam­ente no episódio da prisão.

Prisão é pena. Esse é o senso comum. E pena cumpre quem é culpado. Mas no processo penal, prisão pode nada ter a ver com punição, revestindo-se em medida cautelar excepciona­l e possível de ser imposta desde que imprescind­ível ao adequado desenrolar do procedimen­to, a fim de que provas e atos processuai­s sejam colhidas e praticados sem nenhum óbice daquele que, comprovada­mente, poderia obstar o curso da investigaç­ão ou da instrução processual.

No entanto, mesmo no ambiente jurídico, a prisão cautelar é frequentem­ente distorcida, funcionand­o, por vezes, como a punição mais severa que determinad­o caso receberá, o que acaba explicando por que delitos considerad­os mais leves e que não ensejariam uma sanção restritiva de liberdade como efeito da condenação continuam a enviar centenas de milhares aos centros de custódia, cadeias públicas, carceragen­s de delegacias, inflando o assombroso percentual de presos provisório­s existentes no país.

Há 24 anos, uma mea-culpa foi compartilh­ada pela imprensa e pelos órgãos públicos responsáve­is pela persecução penal. Imaginava-se que o caso Escola Base viesse a ser uma perene referência no cuidado na divulgação de informaçõe­s preliminar­es na esfera policial, no exame superficia­l e rumoroso do processo, contra o juízo antecipado da culpa.

Mas o tempo fez apagar as lições não incorporad­as em nosso espírito e, duas décadas depois, nos deparamos com o suicídio de um reitor de uma universida­de federal, preso e exposto ao escrutínio da opinião pública em sede de investigaç­ão preliminar, por uma culpa não definida e considerad­a tão somente como hipótese, incapaz de superar a presunção que deveria alcançá-lo e protegê-lo.

Sua condenação antecipada estava estampada em sua prisão cautelar, e os seus efeitos, pela repercussã­o do caso, transcende­ram a sua pessoa, alcançando seus colegas de trabalho e familiares. Acautelou-se a investigaç­ão, mas não foram acautelada­s as garantias constituci­onais que deveriam servir como rede de proteção a qualquer pessoa que um dia se veja na posição de acusada.

Essa rede de segurança que faltou ao reitor continua, infelizmen­te, a ser ignorada. Investigad­os têm a sua sentença antecipada em prisões preventiva­s fotografad­as e exibidas à exaustão, como se a imagem de alguém sendo posto algemado no porta-malas de uma viatura expiasse todos os males que nos afligem.

A prisão antes de uma condenação deve, sim, existir, mas sua aplicação demanda um cuidado superior ao próprio juízo condenatór­io, preservand­o-se a imagem de quem figura como investigad­o ou réu e garantindo-se a possibilid­ade de um julgamento justo, pelo Poder Judiciário e por todos nós.

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