Folha de S.Paulo

O mal pela raiz

Grande virtude da obra de Lina Bo Bardi, fusão com a natureza ao redor se tornou algoz da Casa de Vidro, com árvores que tombam e ameaçam estrutura do prédio

- Francesco Perrotta-Bosch Fotos Alberto Rocha/Folhapress

Lina Bo Bardi quis que a Casa de Vidro participas­se dos perigos. Planejou, como diz em seus escritos, uma casa que não fugisse da tempestade ou ficasse amedrontad­a diante dos homens. Fazer arquitetur­a, afirmou, é criar um organismo apto à vida.

O jardim que hoje parece engolfar a construção da década de 1950 antes não estava lá, como atestam cartas da arquiteta ítalo-brasileira. Lina foi plantando as sementes e mudas ao longo dos anos —tinha por companhia seu empregado Arnaldo e seu cão, Victor.

Mas as árvores, desde então, seguiram vontade própria. É essa vegetação que agora põe em risco a casa no Morumbi, na zona oeste paulistana, onde Lina viveu com o marido, Pietro Maria Bardi, de 1952 até a morte deles, nos anos 1990.

Algumas das árvores do terreno estão encerrando o seu ciclo de vida. No ano passado, cinco delas não resistiram e caíram em fortes temporais.

Uma despencou sobre a parte posterior da construção, sem causar qualquer dano, e outra sobre o estúdio em que a arquiteta trabalhava, danificand­o algumas telhas, que precisaram ser substituíd­as. Outras ainda ameaçam tombar.

A mata, ponto central da obra de Lina, não respeitou o fim da construção e foi alterando a relação da casa com o entorno —a sala, de onde antes se avistava a várzea do rio Pinheiros, submergiu numa miríade de copas de árvores, um campo verde suspenso.

A contínua transforma­ção do jardim é a essência do espaço. Isso o torna singular perante outras casas de vidro, como a do modernista americano Philip Johnson, que construiu a sua entre 1946 e 1949, e a Casa Farnsworth, obra do alemão Mies van der Rohe erguida entre 1945 e 1951, também nos Estados Unidos.

Mas, como outros projetos de Lina, ela se revela a um só tempo forte e vulnerável ao ambiente que a envolve. Por causa disso, um criterioso diagnóstic­o está sendo elaborado a respeito das condições do espaço, que ocupa o local de uma antiga fazenda de chá.

O Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, que funciona ali, foi eleito pela Fundação Getty, há dois anos, vencedor de um fundo de pesquisa de cerca de R$ 750 mil. A iniciativa integra um programa mundial do grupo americano empenhado em preservar as construçõe­s modernista­s.

No último ano e meio, uma equipe técnica foi montada em parceria com o Instituto de Arquitetur­a e Urbanismo da USP, em São Carlos, no interior paulista. Com aparelhos de escaneamen­to em três dimensões, o grupo faz um levantamen­to das condições da edificação por meio desses modelos digitais.

O trabalho também inclui uma pesquisa de toda a documentaç­ão original do projeto. Esse conjunto de especialis­tas vai concluir seu relatório em outubro, listando as patologias da construção e apontando as possíveis diretrizes para sua recuperaçã­o.

O laudo de paisagismo feito pelas equipes de Luciana Schenk, André Graziano e Ligia Paludetto mostrou a existência de 832 árvores no terreno, com pelo menos 240 espécies diferentes. O plano elaborado por eles prevê a remoção de mais de uma centena de árvores nos próximos anos.

São algumas as razões. Com o cresciment­o das copas das árvores, reduziu-se a incidência da luz próxima ao solo, dificultan­do o cresciment­o das espécies de menor porte.

Lina tinha plantado diversas flores, e por isso o jardim era bem mais colorido do que é hoje—ai deiaérepl antá-las.

Também serão retiradas as árvores próximas aos caminhos dos visitantes eà Casa de Vidro que, caso caiam, têm maior potencial de causar problemas mais graves.

Também há raízes que cresceram por baixo da residência. Se elas continuare­m crescendo, poderão ameaçar até as fundações da construção.

Ocaso mais cu rios oé oda falsa-seringueir­a plantada por Lina Bo Bardi, árvore que atravessa o espaço vazio no miolo da sala suspensa. Suas enormes raízes se irradiam pela parte frontal e podem vira disputar espaço no subsolo com os alicerces dos pilotis e as demais instalaçõe­s subterrâne­as da Casa de Vidro.

Já bastante avançada em seu ciclo devida, a árvore poderia causar prejuízo inimagináv­el para a integridad­e física da obra caso viesse atombar—alguns dos responsáve­is pela casa, aliás, chegaram até a estudar formas de extirpar o tronco e suas raízes, uma operação caríssima e arriscada, mas descartara­m esse plano por enquanto.

A arquiteta Sol Camacho, diretora técnica e cultural do Instituto B ardi, diz que o relatório compilado pelos arquitetos até o momento não aponta, de fato, um caminho único.

O documento será instrument­o de pesquisa aprofundad­a que oferece uma série de possibilid­ades e modos de intervençã­o. Segundo ela, uma das alternativ­as é “cortar a copa da falsa-seringueir­a da frente da Casa de Vidro, numa técnica que estanca o cresciment­o das raízes”.

Sejam podas ou mesmo cortes integrais das árvores, esses procedimen­tos precisam ser aprovados pela Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente e pelos órgãos de patrimônio histórico nas três esferas governamen­tais.

A contradiçã­o do tombamento em situações como a da Casa de Vidro está no fato de esses projetos arquitetôn­icos não serem coisas inertes.

É complicado manter a condição original de um projeto paisagísti­co, já que não é possível ordenar que árvores deixem de crescer e que flores continuem desabrocha­ndo por meio de decretos patrimonia­is. Nesse ponto, resulta quase fantasioso congelar a condição de um jardim.

Além da situação das árvores, o relatório da equipe de especialis­tas recrutados pela Casa de Vidro apresentar­á outras duas prioridade­s —o telhado e os vidros, como antecipa Renato Anelli, coordenado­r do plano de gestão e conservaçã­o do Instituto Bardi.

No primeiro, será preciso trocar as telhas de fibrocimen­to, corrigindo pontos com infiltraçõ­es. Quanto aos vidros, a equipe tentou entender por que eles estão quebrando —a solução vai ser colocar uma película elástica no encaixe entre eles e os caixilhos.

O próprio Instituto Bardi será o responsáve­l pelos reparos e preservaçã­o do local.

Todo o elaborado projeto de Lina Bo Bardi para a casa onde viveu ao longo de décadas dá margem à sua natural autofagia. Receptiva às mudanças imprevisív­eis da vida e do meio ambiente, a Casa de Vidro, marcada por elementos de abertura e transparên­cia, acabou encontrand­o seu maior algoz na sua grande virtude.

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Detalhes do jardim plantado por Lina Bo Bardi ao redor da Casa de Vidro, no Morumbi, que agoraameaç­a o edifício
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