Mangá ‘Akira’ traz mundo complexo ao leitor
Após ficar 20 anos fora de catálogo, clássico de Katsuhiro Otomo ainda pode ser lido como quadrinho contemporâneo
CRÍTICA Akira - Vol. 1 e 2
Katsuhiro Otomo. Ed. JBC. R$ 69,90 cada (362 e 304 págs. respectivamente)
Érico Assis
Caso um dia se chegue a um acordo quanto ao cânone dos quadrinhos, é muito provável que Akira esteja por lá.
Lançado entre 1982 e 1990, o mangá de Katsuhiro Otomo continua lido, discutido, procurado e com estética que se sustenta três décadas depois.
Ênfase no “procurado”: embora tenha saído em vários países ocidentais no fim dos anos 1980 —quando sua adaptação animada chegou aos cinemas— você tinha que penar pouco tempo depois para conseguir uma edição.
Akira passou anos fora de catálogo. No Brasil, só tinha saído em “versão ocidental” —com cores e no nosso sentido de leitura— entre 1990 e 1998. Depois, sumiu.
Dizia-se que Otomo queria redesenhar várias páginas antes de autorizar mais edições estrangeiras. Verdade ou boato, a autorização demorou.
Foi só nos 35 anos do lançamento que começou a circular por França, Estados Unidos e outros países a nova versão, em seis grossos volumes, tal como os originais japoneses, em preto e branco e sentido de leitura oriental. É a versão que sai agora no Brasil.
Akira começa com uma gangue de motoqueiros adolescentes em Neo-Tóquio no “futuro distante” de 2019. A gangue quase atropela uma criança —na verdade, um ser estranho com corpo de criança, cara de idoso e superpoderes. Um destacamento militar surge para resgatar o ser.
A partir daí, a gangue se vê envolvida no mistério. Um dos motoqueiros, Tetsuo, começa a desenvolver poderes. Kaneda, o líder da gangue, mete-se com uma organização terrorista que enfrenta os militares. Os milicos, por sua vez, coordenam o projeto de crianças com superpoderes e temem o despertar de algo ou alguém chamado Akira.
Otomo tem um mundo complexo para apresentar ao leitor, e conta mais através das imagens do que das palavras. O autor não poupava páginas —nem seus assistentes de desenho, que chegaram às dezenas— para mostrar panoramas urbanos, apetrechos tecnológicos, linhas de velocidade, tiros, socos e feições carregadas na cara de cada personagem.
Embora com inspiração declarada em alguns ocidentais, como Moebius, Akira chegou ao Ocidente na época em que o quadrinho destas bandas ainda era denso de recordatórios de narração, pegando o leitor pela mão para explicar o que se via nos desenhos.
Otomo foi um dos que explicou que é possível se apoiar mais nas imagens —geralmente com mais desenho, mais exuberância e mais quadros para cada cena.
Com essas inovações de 30 anos atrás, hoje ainda se lê Akira como um quadrinho contemporâneo.
Para olhos ocidentais, Akira também marcava pela violência ainda pouco vista nos quadrinhos daqui. Sangue, membros decepados e adolescentes metralhando, às vezes contrastados com um humor que parecia fora de lugar, acabaram virando motivo de crítica ao quadrinho japonês.
Quadrinhos, animes e a cultura pop japonesa, porém, logo invadiram o Ocidente numa onda que só perdeu força em anos recentes. Akira foi um dos propulsores da onda.
A publicação dos seis volumes deve se encerrar nos próximos anos, contudo. A partir daí, espera-se que a obra continue à disposição para leituras e releituras.
Viagem ao Volga
Ahmad Ibn Fadlãn. Trad Pedro Martins Criado. Ed. Carambaia. R$ 67,90 (114 págs.)
Sofia Nestrovsky
Há livros que fazem o mundo parecer maior. O horizonte se alarga quando lemos histórias de aventuras, relatos de viagens a lugares distantes, biografias de pessoas curiosas.
Não são muitas as obras que provocam esse efeito — mas as que o fazem oferecem para o leitor adulto o mais próximo que se pode ter da experiência de ler livros na infância.
“Viagem ao Volga”, escrito em árabe por um homem que viveu há mais de mil anos, pertence a essa categoria: a obra aumenta o mundo ao nosso redor, dá mais esperança às nossas experiências.
Sabemos muito pouco sobre seu autor. Ahmad Ibn Fadlãn viveu em Bagdá e foi funcionário do califa. No começo da década de 20 do século 10, partiu a cavalo de sua terra natal e atravessou quase 5.000 km até chegar ao território que hoje é a Rússia.
Ibn Fadlãn viajou como parte de uma comitiva oficial que prometia levar ajuda ao rei dos eslavos, recém-convertido ao islã. Mas o relato não se restringe aos interesses burocráticos. O autor descreve também pessoas e paisagens, costumes e culturas que encontrou pelo caminho.
Num mundo anterior ao Google Maps e à globalização, tudo parecia muito diferente.
Há gigantes e monstros pelo caminho; há nuvens vermelhas que lutam na madrugada (Ibn Fadlãn não conhecia as auroras boreais pelo nome); há mulheres que não escondem o sexo na frente dos homens; há homens que carregam consigo falos esculpidos em madeira; e há perigos e ameaças, algumas contra o narrador.
Além de todos esses encontros, o livro contém o único relato ocular que restou de um funeral viking tradicional. Tudo aquilo que Ibn Fadlãn viu ele narrou com a mesma curiosidade e atenção.
Quase não julga o que vê, quase não reclama — nem mesmo do frio. Mas quando reclama, até isso nos cativa: “Eu vi o quão frio era o clima: os mercados e as ruas ficam tão vazios que quem passa por ali não encontra sequer um ser humano. Quando eu saía do banheiro e entrava na casa, via que minha barba tinha virado um bloco maciço de gelo, que eu tinha de derreter em frente à fogueira”.
Os acontecimentos são muitos, mas seu relato é breve. Ocupa menos de 60 páginas e se lê numa sentada.
O texto que temos hoje, como explica o tradutor no prefácio, também teve suas aventuras —é a recuperação de fragmentos que foram aparecendo ao longo da história, em países diferentes.
Esta é sua primeira edição no Brasil. Vem bem traduzida e com projeto gráfico de Tereza Bettinardi.
Mas, com todos os diferentes mundos que Ibn Fadlãn nos apresenta, faltaria, para essa edição de luxo se tornar uma versão definitiva, notas que apresentassem o mundo de onde Ibn Fadlãn partiu.
Assim entenderíamos suas variações de humor (inclusive seu senso de humor) ou por que, por exemplo, um companheiro seu disse ter visto um rinoceronte pelo caminho (provavelmente não viu —estava fazendo referência a um lugar-comum da literatura).
Acompanhamos a viagem que Ibn Fadlãn fez, mas a viagem que temos de fazer para chegar até ele não é tão fácil. Nossos mundos não são os mesmos. Seria interessante ver mais a fundo o quão diferentes eles são.