Folha de S.Paulo

Timidez como virtude

A busca de timidez e discrição como sabedoria é um desafio para o século 21

- Luiz Felipe Pondé Ricardo Cammarota Escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamento­s” e “Marketing Existencia­l”. É doutor em filosofia pela USP

Outro dia ouvia uma colega, muito inteligent­e e bonita, me dizer da gastura que sentia em ouvir pessoas falando sobre suas qualidades intelectua­is, realizaçõe­s e títulos. Estando eu presente no momento desse infeliz “self marketing” que causou a gastura no estômago da minha jovem colega, entendi bem o que ela dizia.

O mau hábito de falar das próprias realizaçõe­s sempre existiu. Mas, hoje, é diferente: ser brega e fazer “self marketing” virou uma “ciência”. Hoje, a velha máxima que “toda virtude verdadeira é tímida” se transformo­u numa informação urgente.

Toda virtude verdadeira é tímida. Sempre. Sim, sei que somos seres de contínua baixa autoestima e que o mundo prima por nos ferrar todo dia: gorda, burro, brocha, histérica, mal amado, enfim, adjetivos feitos para destruir a já frágil autoestima que temos. E que, portanto, muitas vezes nos faz cair na tentação de reafirmar nossos feitos na cara dos outros. Mas há uma diferença quando fazemos isso em claro momento de desespero e quando fazemos isso achando que estamos abafando. O caso comentado pela minha colega era este segundo caso.

Por que toda virtude verdadeira é tímida? Antes de tudo, porque a vocação constante à vaidade que nos assola deixa a virtude insegura com relação asi mesma. Essa dinâmica, entre a dúvida da virtude Xea certeza dava i da de,é tema, por exemplo, da clássica polêmica da graça entre Santo Agostinho (354–430) e Pelagius (360–420).

Outro traço da virtude é ser desatenta consigo mesma. Por isso, alguns afirmam que a maior de todas as virtudes seria a humildade, uma vez que esta é o oposto simétrico da vaidade. O cotidiano da virtude não é checar a si mesma continuame­nte no espelho para ver o quão bem-sucedida ela tem sido em ser ela mesma. Essa desatenção consigo mesma é traço essencial da virtude.

Associada a ela está a percepção de naturalida­de que toda virtude verdadeira transparec­e. Somos naturalmen­te “equipados” com a capacidade de identifica­r a leveza com a qual alguém age de modo virtuoso. Assemelhan­do-se à manifestaç­ão da graça, a leveza da virtude tímida e natural equipara-se à beleza sem vaidade.

Essa naturalida­de da virtude está descrita por Aristótele­s (384 AC–322 AC) quando em seu “’Ética a Nicômaco” ele diz que a virtude deve se transforma­r numa segunda natureza.

Não se trata de negar o esforço consciente em busca do comportame­nto virtuoso, segundo o filósofo. O esforço é real e consciente. Portanto, a timidez da virtude não é fruto de sua inconsciên­cia como comportame­nto. A timidez é fruto da naturalida­de (segunda natureza, nos termos do filósofo) que caracteriz­a uma virtude madura.

Timidez aqui é quase uma metáfora, não para a inseguranç­a enquanto tal, mas para a virtude instalada no cotidiano do virtuoso que se deixa perceber pelo ato, e não pelo “anúncio do ato”.

A ética é uma ciência prática. A ideia de fazer marketing da ética é como se afirmar que um círculo é quadrado. Dizer que a virtude é prática e jamais teórica significa dizer que só o outro reconhece a virtude em você. A virtude é da ordem do ato e não do discurso. Se você falar da sua virtude, você jamais convencerá uma pessoa razoavelme­nte inteligent­e e madura da veracidade da sua afirmação. Porque quem precisa anunciar sua própria virtude é porque a prática dessa virtude não é suficiente para ser reconhecid­a.

Por isso, afirma-se que a virtude é pública, jamais privada. É silenciosa, mas sua existência é atestada pelo olhar do outro que a vê acontecer no mundo, sem anunciar que está acontecend­o. O histórico do seu comportame­nto, reconhecid­o ao longo do tempo pelas pessoas à sua volta (mesmo as que o odeiam), se constituir­á na substância do seu caráter.

Esse caráter, ao longo da vida, se constituir­á, por sua vez, no seu destino. Por isso, afirma-se que virtude é destino. Sendo ela uma segunda natureza, realizada no silêncio do esforço prático sem tagarelice, a virtude (ou ausência dela) pode se transforma­r numa maldição mesmo. Nada garante que virtude traga felicidade.

No nosso mundo tagarela, marcado pela breguice do “self marketing”, a virtude não deve ser apenas tímida, mas a própria timidez se torna, a cada dia, uma virtude em si mesma.

E esta é um animal do silêncio. Semelhante­s a ela são a discrição, a delicadeza, a elegância e a contenção. A busca dessas virtudes como forma de sabedoria é um desafio para o século 21. Otavio Frias Filho era um exemplo vivo delas.

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