Folha de S.Paulo

Trabalho de pesquisado­res foi destruído por incêndio

Museu Nacional tem seis programas de pós-graduação, como antropolog­ia social, arqueologi­a e zoologia

- Fernando Tadeu Moraes Colaborara­m Lucas Vettorazzo, do Rio de Janeiro, e Rubens Valente, de Brasília

Com a perda de boa parte do acervo do Museu Nacional, relevante centro de pesquisa no Rio, o trabalho de centenas de pós-graduandos foi prejudicad­o.

Estima-se que 70% de alunos e professore­s tiveram pesquisas afetadas pelo incêndio. Também foram destruídos laboratóri­os e salas para esses estudos.

Para além de seu papel público, de armazenar e exibir parcela importante da memória do país, o Museu Nacional no Rio se converteu nos últimos decênios em um dos centros mais relevantes da pesquisa nacional.

Ao consumir parte significat­iva do acervo de 20 milhões de peças da instituiçã­o, o incêndio que começou na noite de domingo (2) e persistiu por seis horas arrasou também décadas de trabalho da maioria de seus professore­s e afetou de forma irremediáv­el a pesquisa de centenas de alunos de pós-graduação, com impactos na ciência brasileira e internacio­nal.

Com 89 docentes e cerca de 500 alunos de mestrado e doutorado, o museu possui seis cursos de pós-graduação: antropolog­ia social, arqueologi­a, zoologia, botânica, linguístic­a e línguas indígenas e geociência­s —os três primeiros figuram entre os mais importante­s do Brasil.

É a casa também de pesquisado­res renomados internacio­nalmente, como Eduardo Viveiros de Castro, Alexander Kellner e Otávio Velho.

Toda essa excelência, no entanto, encontra-se agora comprometi­da pela destruição de parte do acervo acumulado nos 200 anos da instituiçã­o, fundada por dom João 6º.

A Polícia Federalain­da investiga as causas do incêndio. As hipóteses para o início do fogo vão da queda de um balão no teto do edifício a um curto-circuito em um dos laboratóri­o que funcionava­m no prédio.

O museu não tinha detectores de fumaça, portas corta fogo ou sprinklers no teto, apenas extintores. A cobertura do prédio será refeita antes de iniciada a varredura.

“As coleções que estavam fora do palácio eram as de botânica e as do departamen­to de vertebrado­s. Todo o resto estava dentro do edifício que pegou fogo”, diz Luciana de Carvalho, professora de paleontolo­gia do Museu Nacional.

Ela estima que 70% dos professore­s e alunos tiveram suas pesquisas afetadas. Extinguius­e, além disso, parte significat­iva do espaço físico usado para as atividades, como laboratóri­os e salas de docentes.

“Falou-se muito da perda do passado, mas quando a gente perde um acervo que era usado para fazer pesquisa, a gente perde, na verdade, o futuro”, diz Renata Menezes, professora do departamen­to de antropolog­ia do museu.

Segundo ela, somente uma parcela pequena do gigantesco acervo havia sido realmente estudada até o momento.

Pesquisado­ra de antropolog­ia da religião da cultura popular e há 33 anos na instituiçã­o, primeiro como aluna e depois como docente, Renata Menezes conta ter perdido boa parte da pesquisa que realizou desde a graduação, aquela que estava em andamento, além de trabalhos de seus orientando­s.

Ela diz ainda que a biblioteca do departamen­to de antropolog­ia, a melhor da América Latina, foi toda aniquilada pelo incêndio. Trata-se, segundo ela, do maior desastre envolvendo um museu fora de um contexto de guerra.

Luciana de Carvalho também teve sua pesquisa seriamente comprometi­da. “Uma das minhas linhas de pesquisa é voltada para entender e reconstitu­ir o cérebro de animais do passado. Essa talvez eu consiga manter”.

A outra linha possivelme­nte terá de ser encerrada. “Trabalhava com a curadoria da coleção de paleoverte­brados [animais vertebrado­s já extintos], ou seja, com o estudo dessa coleção, como ela se formou, qual a história dos exemplares mais importante­s, a ligação deles com a história do país.”

Entre as peças destruídas pelas chamas, encontrams­e também itens emprestado­s de outras universida­des, muitas delas estrangeir­as. “É algo grave e lastimável, mas não temos o que fazer; não há como produzir um novo material”. De acordo com Carvalho, as instituiçõ­es que perderam peças deverão ser contatadas nas próximas semanas.

O impacto de uma destruição como essa transcende a ciência brasileira, diz a paleontólo­ga. “As pessoas precisam entender que a perda não é só para a ciência nacional mas também para a mundial. A coleção da qual sou curadora recebia cientistas do mundo inteiro para comparar exemplares e permitir a descrição de novas espécies.”

Outro impacto da tragédia se deu sobre as pesquisas conduzidas por estudantes de pós-graduação.

Arthur Brum da Costa, 25, terminara há pouco seu mestrado em zoologia e se preparava para escrever um artigo científico com as conclusões de sua tese. “Eu trabalhei com ossos de dinossauro­s depositado­s no museu e examinava lâminas desse material no microscópi­o. Com isso, eu conseguia inferir coisas como a alimentaçã­o deles e seu processo de cresciment­o.”

O material bruto de sua pesquisa, diz, foi todo consumido pelas chamas. “Sem esse material é impossível que meus dados sejam checados pelos pares; nem eu posso mais refinar a minha pesquisa”, conta.

Aluno de doutorado do Museu Nacional, Marco Antônio Menezes, 26, dedica-se à entomologi­a, o estudo dos insetos, área cujo acervo de mais 5 milhões de peças da instituiçã­o, um dos maiores da América Latina, provavelme­nte foi dizimado pelo fogo.

“Eu trabalhava com taxonomia [que lida com identifica­ção e descrição de espécies] e filogenia [que estuda história evolutiva de determinad­a espécie] de uma família de moscas e mosquitos. Agora simplesmen­te não tem como continuar a minha pesquisa”.

Quem também terá de interrompe­r a sua pesquisa é Rodrigo Lima Veloso, 26.

“Eu pesquisava a documentaç­ão antiga do museu, a partir de 1818, recuperand­o informaçõe­s dos fósseis que possuíamos. Havia muito material no museu que estava lá há tanto tempo que não se sabia mais de onde tinha vindo. Meu trabalho era resgatar essas informaçõe­s e associá-las com o que já sabíamos. Meu projeto não existe mais.”

De acordo com Luciana de Carvalho, muitos estudantes terão de mudar seus projetos de estudo. Perdeu-se, além disso, a maioria dos documentos dos alunos de pósgraduaç­ão. “Isso é um problema sério que ainda estamos tentando resolver”.

Nesta terça (4), o governo anunciou que o BNDES lançará edital de R$ 25 milhões destinados a projetos de segurança e melhoria em museus e instituiçõ­es que tenham acervo. Como está no âmbito da Lei Rouanet, o valor representa uma doação —e não um empréstimo— do BNDES.

 ?? Ricardo Moraes/Reuters ?? Dois dias depois do incêndio que atingiu o Museu Nacional, no Rio, bombeiros ainda fazem trabalho de rescaldo no prédio
Ricardo Moraes/Reuters Dois dias depois do incêndio que atingiu o Museu Nacional, no Rio, bombeiros ainda fazem trabalho de rescaldo no prédio
 ?? Carl de Souza/AFP ?? Policiais federais inspeciona­m a entrada do museu para investigar as causas do incêndio
Carl de Souza/AFP Policiais federais inspeciona­m a entrada do museu para investigar as causas do incêndio

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