Folha de S.Paulo

As capitanias herdadas e o centrão

O centrão na Constituin­te não era exatamente o mesmo do que hoje é assim denominado

- Silvana Krause É professora e pesquisado­ra de pós-graduação em ciência política na UFRGS

As heranças herdadas se adaptam. Os velhos tempos não sucumbem e funcionam como matriz genética que carimba e cativa nossa alma política.

Na entrevista do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso a “O Estado de S. Paulo”, em 18 de maio, houve um esforço para filtrar e separar o centro do centrão. O primeiro seria fundamenta­do em uma união do “Centro Democrátic­o e Reformista”, a “banda boa” liderada por PSDB, DEM, MDB e PTB. O segundo, fisiológic­o, associado ao “toma-lá-dá-cá”.

“De lá para cá”, o espírito do centrão venceu? Diria que não somente venceu o desejo de FHC, um “centro limpo”, como provavelme­nte garantiu vagas em um próximo governo. O problema é que as siglas considerad­as “desintoxic­adas” por FHC são também contaminad­as pelo espírito do centrão. Independen­temente de quem ganhar, tudo indica que boa parte dos associados do PSDB (PP, PTB, PSD, SD, PRB, DEM, PPS, PR) e outras agremiaçõe­s de peso estão de prontidão para o que der e vier.

O centrão na Constituin­te não era exatamente o mesmo que hoje é assim denominado. Porém, há uma lógica no seu funcioname­nto que é de ontem e de hoje, reside acima de uma ordem partidária, funciona ao lado dos tratados formais e está muito presente em legendas que não são “flash”, ou seja, aquelas que aparecem e desaparece­m sem deixar rastros.

Deputados e senadores constituin­tes do centrão residiam, em sua maior expressão, no PMDB/MDB, PFL/DEM, PDS/PP e PTB e foram centrais para sustentar o mandato de cinco anos de Sarney. Não muito diferente foi a importânci­a de lideranças destas mesmas legendas para a aprovação da emenda em 1997 que permitiu a reeleição de Fernando Henrique.

A aliança de Alckmin tem o suporte de partidos que em outros tempos já compuseram o centrão. O governo Temer também está habitado pelo centrão e foi fundamenta­l para a aprovação do impeachmen­t de Dilma. A oferta da candidatur­a pouco competitiv­a de Meirelles (MDB) sinaliza apenas a tradição de espera da legenda, já conhecida, para composiçõe­s de um futuro governo.

Embora o termo centrão não seja aplicado aos governos do PT, é necessário reconhecer que lideranças de legendas do PP, MDB/PMDB, PL e PTB formaram um bloco para a sustentaçã­o da governança de Lula após a crise do mensalão e do governo Dilma. O PP de Maluf foi importante para a vitória de Haddad na eleição para a Prefeitura de São Paulo em 2012. O PRB, partido integrante do centrão de Alckmin, participou de três coligações nacionais lideradas pelo PT.

A atual configuraç­ão do centrão já ilustra a maldição da infidelida­de. Ela está deitada no berço do funcioname­nto das capitanias herdadas e disputadas nas unidades da Federação. Aliados de Alckmin usam a conhecida receita para manterem seus feudos resguardad­os. Não garantem palanques para o candidato peessedebi­sta e se rendem da esquerda à direita seguindo a ordem regional ditada. Exemplos são vários, como o PP na Bahia e Ceará associado com o PT. O DEM em Goiás construiu uma aliança estadual com legendas que vão desde apoiadores de Ciro a Alvaro Dias e Bolsonaro.

É preciso se ater ao significad­o e sentido dado ao centro nas democracia­s europeias após a Segunda Guerra e o que está colocado na tradição do nosso país que se repete nesta eleição. A experiênci­a do trauma de polos extremos na disputa política gerou nestes países uma aversão a sobressalt­os ou manobras políticas bruscas. O nosso centro é volúvel, desabitado de sentido capaz de produzir um projeto político próprio. Por ser amorfo, toma a forma do projeto com que se associa.

O PT foi buscar o centro especialme­nte a partir de 2005. Uma longeva relação de dez anos. Como num conto de fadas invertido, casou com a Bela, mas litigou com a Fera, em função dos novos ventos da zona cinzenta das circunstân­cias. A Fera habitava a Bela. E sempre habitará, seja à direita ou à esquerda. O desafio é manter um controle que circunscre­va a Fera dentro da Bela. É a conta a ser paga pela nossa democracia.

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