Folha de S.Paulo

Enquanto Roma arde

Grupos de interesse estão nos levando a uma situação falimentar

- Alexandre Schwartsma­n Consultor, ex-diretor do Banco Central (2003-2006). É doutor pela Universida­de da Califórnia em Berkeley

Tudo bem, a hipocrisia pode ser mesmo a homenagem que o vício presta à virtude, mas há limites ao que o estômago humano pode suportar nesta área.

O festival de oportunism­o que surgiu das cinzas do Museu Nacional é de causar engulhos a qualquer um que tenha um mínimo de honestidad­e intelectua­l, qualidade cada vez mais rara no país.

Sobraram políticos (e, lamento dizer, economista­s — se bem que caberia aí mais de uma qualificaç­ão) que não hesitaram em inverter as leis da física, para não falar da história, com o objetivo de ganhar um trocado fácil no jogo eleitoral.

De maneira geral se buscou associar o desastre à austeridad­e fiscal, principalm­ente no que se refere ao teto de gastos públicos.

Ignora-se, intenciona­lmente, que o teto de gastos começou a vigorar em 2017, enquanto os relatos acerca do péssimo estado do museu datam de vários anos antes.

Em 2004, por exemplo, o então secretário estadual de Energia, Indústria Naval e Petróleo, Wagner Viter, afirmava: “O museu vai pegar fogo. São fiações expostas, mal conservada­s, alas com infiltraçõ­es, uma situação de total irresponsa­bilidade com o patrimônio histórico”.

Já em 2015 o museu foi fechado por falta de verbas. Um esforço mínimo de pesquisa revela problemas ao longo dos últimos 20 anos, pelo menos.

A rigor a possibilid­ade de eventos presentes afetarem de alguma forma o passado, contrarian­do as leis da física, não é um argumento novo: não faltam economista­s que atribuam a recessão iniciada no segundo trimestre de 2014 à política econômica de Joaquim Levy, que assumiu o cargo de ministro da Fazenda no começo de 2015.

De que vale, porém, a lógica face à “narrativa”?

Também não é verdade que tenha havido uma redução generaliza­da de gastos públicos, muito pelo contrário.

Medida a preços de 2017 a despesa dos três níveis de governo subiu de R$ 2,7 trilhões em 2010 para R$ 3,1 trilhões em 2014 e R$ 3,2 trilhões no ano passado, aumento de R$ 520 bilhões. Já o investimen­to público caiu de R$ 180 bilhões em 2010 para R$ 175 bilhões em 2014 e meros R$ 80 bilhões em 2017.

O problema nunca foi falta de dinheiro, mas a definição de prioridade­s para seu uso.

Preferimos gastar R$ 112 bilhões a mais com a remuneraçã­o de empregados e R$ 294 bilhões a mais com benefícios sociais (dos quais 38% representa­m aposentado­rias e pensões de servidores públicos, 54% são gastos previdenci­ários do INSS e apenas 8% representa­m benefícios de assistênci­a social).

Apesar disso, os que hoje rasgam as vestes em público pela tragédia do museu são os primeiros na fila para manter o estado das coisas, seja se opondo à reforma da Previdênci­a, seja no apoio a medidas como elevação de salários no setor público, seja, por fim, deixando claro em seu programa de governo —em direta contradiçã­o com a realidade— que o remédio para o país consiste em... gastar mais!

A verdade é que estão matando a galinha dos ovos de ouro. Na busca insaciável para extrair renda do resto da sociedade os grupos de interesse, sobretudo do funcionali­smo, estão nos levando a uma situação falimentar.

A defesa de novos impostos para acalmar sua fome já se mostrou equivocada: a história dos últimos 20 anos de gastos federais mostra que quanto mais se arrecada mais se gasta e mais se gasta mal.

Se não mudarmos esta história o desastre do domingo passado será apenas o alerta dos outros tantos que ainda haveremos de enfrentar.

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