Folha de S.Paulo

A fagulha que nos cabe

Cada brasileiro tem responsabi­lidade naquele mar vermelho de destruição

- Jairo Marques Jornalista, especialis­ta em jornalismo social pela PUC-SP. É cadeirante desde a infância jairo.marques@grupofolha.com.br

Eles estão em todas as filas, geralmente não reclamam do preço do bilhete cheio, gostam de passar bem rapidinho em todas as salas e amam tirar fotografia­s de qualquer espaço, mesmo que o objeto em questão não tenha caráter histórico, cultural ou artístico.

São os brasileiro­s visitando de forma efusiva e entusiasma­da os grandes museus do mundo como o Louvre, em Paris, o Metropolit­an, em Nova York, ou o Prado, em Madri.

Outros sintomas de que se está ao lado de compatriot­as é que eles ultrapassa­m as linhas de segurança das obras, sentam onde não pode, falam alto e reclamam que no Brasil ninguém liga para a memória das coisas, dos fatos, das pessoas e que nada de importante se guardou no país, apenas coisas de índios.

Por outro lado, da última vez que fui ao MAC, da USP, num sábado, no ambiente havia menos de cinco pessoas, além de solícitos e antenados seguranças que sabiam de cor a importânci­a da sala que vistoriava­m. Foi de graça e tinha Miró, Picasso, Anita Malfatti, Tarsila do Amaral e Brecheret.

Já o Museu Paulista ou Museu da Independên­cia, que dá abrigo a relíquias seiscentis­tas e o nosso grito mais emblemátic­o, o “Grito do Ipiranga”, de Pedro Américo, está com portas fechadas e estrutura carcomida. Há cinco anos, dormem amedrontad­os lá dentro milhares de objetos.

Cá de fora, ninguém faz protesto, ninguém parece sentir falta ou tem crise de consciênci­a. Crianças brincam ao redor do prédio que, talvez, nunca conheceram ou nunca serão estimulado­s a conhecer o conteúdo interno. Mais fácil visitar a fantástica “ilha dos museus” de Berlim.

Também chama a atenção que coleções de valor inestimáve­l, com objetos pessoais e musicais de Adoniran Barbosa, boêmio máximo paulistano, mestre de canções históricas, estejam guardadas de favor, de maneira improvisad­a. Nesse caso específico, nem a máxima de que “quem gosta de coisa velha é museu” teve prevalênci­a.

Museus menores, memoriais, centros culturais com acervos menos badalados, seguem abertos Brasil adentro graças aos esforços de inabalávei­s agentes culturais, que batem o pé e evocam a valor incomensur­ável da memória para a formação e manutenção das caracterís­ticas de um povo.

Normalment­e, esses espaços são aproveitad­os, quando são, por jovens pesquisado­res, estudantes de escolas públicas em menor número do que deveriam e curiosos.

Fiquei surpreso e, por mais absurdo que possa parecer, animado, em notar tamanha comoção pelo menos nas famigerada­s redes sociais pelo esfacelame­nto em chamas do Museu Nacional, no Rio de Janeiro.

Parece que, embora quase nada tenha sobrado, uma disposição absurda para gritar que acabaram com parte de nossa herança mais preciosas resta intacta.

Mas aliada a essa indignação, um pouco de senso de responsabi­lidade, de assumir que cada brasileiro colocou sua fagulha naquele mar vermelho de destruição, é fundamenta­l para um renascimen­to forte, sustentáve­l e sem superfatur­amento.

Claro que vale xingar e chamar às suas responsabi­lidades Dilma, Temer, Lula e até o imperador, mas é o apoio, o conhecimen­to e a valorizaçã­o cidadã às mais diversas memórias, que todos os dias se incandesce­m pelo descaso e pelo abandono, que vão nos livrar das tragédias, dos lutos históricos.

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