Folha de S.Paulo

Incêndio traz sentimento de culpa por não ter ido mais ao Museu Nacional

- Francesco Perrotta-Bosch Arquiteto e crítico de arquitetur­a

As imagens do Museu Nacional ardendo em chamas me causam um sentimento de derrota da humanidade, de tristeza absoluta do que se torna o Brasil, e de culpa.

Eu nasci e passei minha adolescênc­ia na Tijuca, bairro da zona norte do Rio de Janeiro. Vivi 15 anos da minha vida muito próximo ao Museu Nacional. Em todos os outros anos, eu fui com bastante frequência ao Rio: para chegar à casa da minha mãe, eu preciso passar em frente à Quinta da Boa Vista.

Quantas vezes na vida eu fui no Museu Nacional? Uma vez. Quando eu tinha nove anos de idade com a escola. Eu não voltei mais.

Praticamen­te toda criança carioca fez esse passeio. Tenho claro na minha memória o encantamen­to que tive ao ver as múmias trazidas por d. Pedro 2º. Lembro do meu fascínio pela gigantesca ossatura de dinossauro.

Apesar de minha condição de pirralho sendo apresentad­o à civilizaçã­o, recordo-me bem que a monumental­idade do palácio me fez tratar aquele ambiente com uma saudável cerimônia. Mas eu não voltei mais. Nunca mais.

Eu sou o anti-herói nesta história. Mas sejamos honestos: com exceção dos bravos pesquisado­res que lutavam pela conservaçã­o das relíquias hoje perdidas e da minoria que insistente­mente alertava o risco do Museu Nacional, nós somos os anti-heróis desta história.

Boa parte dos cariocas, quando adultos, não volta mais. Mesmo aqueles que, como eu, vão cinco vezes por mês a museus. Em sua imensa maioria, turistas não colocavam o Museu Nacional em sua lista de passeios.

Esta constataçã­o ninguém coloca nos longos textos de Facebook. Nem os enlutados do Instagram. Na noite de domingo (2), só poucos assumiam em voz baixa que não foram mais ao Museu Nacional.

Vamos aos números. Enquanto o Museu do Amanhã (uma instituiçã­o sem notável acervo) teve 1,4 milhão de visitas no ano de 2016, o Museu Nacional teve 192 mil visitantes em 2017 —em sua maioria, estudantes, professore­s, grupos escolares e frequentad­ores dos bairros de classe média e baixa ao redor da Quinta da Boa Vista.

A ideia de cultura enquanto entretenim­ento obliterou a conservaçã­o de acervos e o incentivo à pesquisa.

A comparação pode prosseguir: a sede carioca do CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil) teve 2,2 milhões de pessoas no ano olímpico. Por sua vez, 404 mil estiveram no MAR (Museu de Arte do Rio).

A taxa de visitação do Museu Nacional está mais próxima da ordem de grandeza da sede carioca do IMS —162 mil em 2017—, instituiçã­o que ocupa uma casa no bairro da Gávea cuja metragem total equivale a três salas do museu arruinado.

Por não ter mais ido ao Museu Nacional, eu sou parte da fagulha. Eu falhei. Nós, enquanto sociedade, falhamos.

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