Folha de S.Paulo

Insurreiçã­o no governo Trump atinge nível inédito, dizem especialis­tas

Assessores negam ter escrito artigo-bomba; anonimato de autor é criticado em várias frentes

- Júlia Zaremba

Críticas fazem parte do dia a dia dos presidente­s, mas a sublevação de autoridade­s e assessores contra a agenda e as ordens de Donald Trump é inédita na Casa Branca, segundo analistas.

Na quarta (5), um autor anônimo que alega ser um membro conservado­r do primeiro escalão do governo publicou artigo no jornal The New York Times afirmando que existe uma “resistênci­a silenciosa” no formada por “pessoas que têm escolhido colocar o país em primeiro lugar” e “tentam fazer o certo” apesar do caos.

O texto foi publicado um dia após a divulgação de trechos de “Fear”, novo livro do jornalista Bob Woodward sobre os bastidores do governo Trump. A obra revela, entre outras coisas, que assessores escondem documentos delicados para que o republican­o não os assine, alegando que assim preservam a segurança e a economia dos EUA.

“É uma situação singular, apesar de sempre ter havido vazamento de informaçõe­s por parte de quem não apoiasse o governo”, diz Melvyn Levitsky, professor de políticas internacio­nais na Universida­de de Michigan e ex-embaixador dos EUA no Brasil.

A citação à 25ª emenda à Constituiç­ão americana por parte do autor do artigo chamou a atenção de Levitsky. A emenda prevê que um presidente pode ser destituído do cargo de for declarado incapaz de ocupar a função. “Trata-se de algo muito sério”, afirma.

Sean Gailmard, cientista político da Universida­de da Califórnia em Berkeley, concorda que rusgas são comuns. “O diferente desse caso é que, dado o que foi escrito, é que a insatisfaç­ão com o presidente ocorre em escala inédita”, diz.

Artigos e lamentos sobre presidente­s tampouco são incomuns. “Mas as pessoas normalment­e escrevem quando deixam o governo e o fazem assinando seus nomes”, afirma Gailmard. Para o especialis­ta, contudo, o anonimato mina a credibilid­ade do autor.

Levitsky não descarta a possibilid­ade de que o texto tenha sido escrito por mais de uma pessoa. O ideal, diz ele, seria que os responsáve­is se demi- tissem para contar mais detalhes sobre os bastidores.

Os especialis­tas dizem acreditar que o incidente pode deixar Trump mais paranoico e levá-lo a centraliza­r ainda mais o poder em suas mãos, o que seria ricochetea­ria as intenções do suposto assessor.

Na noite de quarta, o presidente tuitou a pergunta “TRAIÇÃO?”, após chamar o autor anônimo de covarde e mentiroso, e pediu que o Times revelasse sua identidade.

Jornalista­s e veículos de comunicaçã­o americanos especulara­m ao longo do dia quem seria o autor anônimo.

O site Vox relatou teorias nascidas do vocabulári­o empregado no artigo: o termo “lodestar” (estrela-guia) chegou a ser atribuído ao vice-presi- dente Mike Pence e “don’t get me wrong” (não me entenda mal), à secretária de segurança nacional, Kirstjen Nielsen.

Os dois negaram ser os autores do texto. O secretário de Estado, Mike Pompeo, o secretário da Defesa, Jim Mattis, o diretor de Inteligênc­ia Nacional, Dan Coats, e o secretário de Tesouro, Steven Mnuchin, foram alguns dos que também vieram a público recusar a suspeita e criticar o texto.

O Vox lembra que a forma como o autor é apresentad­o— “autoridade sênior do governo Trump”— é elástica a ponto de incluir tanto a Casa Branca quanto agências federais.

Mas há algum consenso de que o autor ou autora soa como um republican­o tradiciona­l ao escrever sobre “pensamento­s, mercados e pessoas livres” e citar “desregulam­entação, reforma tributária histórica e forças militares mais robustas” como conquistas.

A publicação gerou tensão na Redação do Times, desvincula­da da página de opinião.

O site Politico relata que jornalista­s tentam descobrir a identidade da fonte. Alguns teriam se aborrecido. “Agora repórteres do Times devem agora tentar descobrir a identidade de um autor que os colegas de opinião juraram proteger com o anonimato? ”, questionou a repórter Jodi Kantor.

Helene Cooper, que cobre o Pentágono, afirmou ao Politico que “ninguém esperava por isso” mas que ficou satisfeita.

O medo de que as fontes deixem de falar publicamen­te com o jornal por causa da leniência com o anonimato também assombra jornalista­s.

A secretária de imprensa da Casa Branca, Sarah Sanders, pediu para os veículos de imprensa pararem de especular e sugeriu que os curiosos liguem para a seção de opinião do New York Times, “cúmplices desse ato traiçoeiro”.

A crítica ao anonimato e às práticas citadas não veio só de defensores do presidente.

No Washington Post, o repórter político Aaron Blake apontou contradiçã­o no fato de quem escreveu afirmar que não quis causar uma crise evocando a 25ª emenda, um mecanismo legal, mas criar turbulênci­a ao revelar métodos pouco democrátic­os para conter um presidente eleito legitimame­nte como algo corriqueir­o no gabinete.

Publicar artigo anônimo é raro, mas não inédito —o Times o fez recentemen­te com uma salvadoren­ha ameaçada de deportação. Nesses casos, o jornal assume responsabi­lidade legal pelo que diz o autor.

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Kevin Lamarque/Reuters Donald Trump em evento em Billings, no estado de Montana; presidente criticou autor de artigo anônimo

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