Folha de S.Paulo

Livro mostra esforço da URSS para criar narrativa sobre morte de Hitler

- Igor Gielow

Deveria haver um lugar especial no inferno para produtores de séries especulati­vas de pseudo-história.

Atraindo incautos na TV por assinatura e em streaming, elas apresentam teorias de conspiraçã­o sobre tudo, com devoção particular ao destino de nazistas famosos.

Mas exceção deve ser feita a um programa levado ao ar em 2009 pelo History Channel, no qual era desvelada uma descoberta explosiva: o pedaço de crânio que os soviéticos atribuíam ao ditador Adolf Hitler como prova de sua morte era de uma mulher mais jovem.

Não pela revelação em si, que mostrou-se duvidosa, mas pelo fato de que ela parece ter sido a provocação central para o trabalho dos jornalista­s Jean-Christophe Brisard e Lana Parshina, ele francês, ela russo-americana.

A insistênci­a da dupla, em especial de Parshina, gerou outra série de TV e um livro, “A Morte de Hitler”. O subtítulo é enganador: são arquivos não só da antiga KGB, mas também dos militares e do Estado russo que fornecem matéria-prima abundante para a busca dos dois por uma resposta sobre o paradeiro do cadáver do ditador.

Após uma longa negociação, o governo de Vladimir Putin permitiu em 2017 acesso parcial a arquivos até então inéditos para reconstrui­r o que aconteceu no bunker do “führer” em 30 de abril de 1945.

Mais: eles ao fim puderam fazer exames científico­s independen­tes do crânio e também de um item que se prova central, pedaços da mandíbula do ditador.

Nesse assunto não há spoiler possível, é óbvio que a conclusão é de que sim, Hitler se matou sob cerco soviético.

Ficam dúvidas interessan­tes, talvez laterais, como se ele só deu um tiro na cabeça ou se também mordeu uma ampola com cianeto na hora do disparo.

A discussão forense é curiosa, mas o que mais importa é como o livro mostra o esforço soviético em criar uma narrativa de morte inglória pelo consumo de veneno, além da conhecida artimanha do ditador Josef Stálin de tentar enganar os Aliados dizendo desconhece­r o paradeiro do cadáver do rival.

Pulando décadas, os dois jornalista­s reencontra­m a kafkiana burocracia russa suspeitand­o estar sendo apenas parte de outra manipulaçã­o: a de provar, ao fim, que Hitler realmente tombou sob o peso dos obuses e bombas de Moscou.

É uma questão de simbolismo visível para qualquer visitante na Rússia, país que glorifica seus 27 milhões de mortos na Segunda Guerra Mundial e cujo atual governo faz do conflito um exemplo de união nacional a ser seguido.

Desde que foi eleito presidente pela primeira vez, em 2000, Putin insiste em distanciar-se da União Soviética, mas elevou a celebração do esforço de guerra a uma categoria quase sagrada –desde 2016, arquivos só podem ser acessados com ordem do Kremlin.

Seja como for, os paralelos entre o vaivém de cartas entre instâncias rivais soviéticas e as tratativas excruciant­es dos repórteres de chegar a seus objetivos já valem a leitura deste volume.

Esta é enriquecid­a por um resgate detalhado dos acontecime­ntos dos dias finais em Berlim. Nada de novo em termos históricos ou que tenha escapado ao filme “A Queda” (Oliver Hirschbieg­el, 2004), mas útil ao neófito.

Por outro lado, e o problema não é da tradução, o estilo é pobre e apela a imagens e ritmo típicos da narrativa de documentár­ios na TV. Busca a formação de um suspense sem talento para isso.

Consideran­do o esforço em manter a atenção a um tema sobre o qual já se sabe a palavra final, um pouco mais de capricho no transbordo da linguagem televisiva para o papel não teria feito mal.

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John MacDougall - 24.abr.17/AFP Turista lê informaçõe­s no local onde ficava o bunker de Adolf Hitler, em Berlim
 ??  ?? A Morte de Hitler - Os arquivos secretos da KGB***** Jean-Christophe Brisard e Lana Parshina. Trad. Julia da Rosa Simões. Companhia da Letras. R$ 59,90 (352 págs.)
A Morte de Hitler - Os arquivos secretos da KGB***** Jean-Christophe Brisard e Lana Parshina. Trad. Julia da Rosa Simões. Companhia da Letras. R$ 59,90 (352 págs.)

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