Folha de S.Paulo

Oração ao desprendim­ento

Estou cansada de estar agarrada aos antepassad­os e suas limitações

- Tati Bernardi Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”

Eu queria pedir perdão aos meus pais, mas vou fazer sucesso. Vou conhecer países que eles nem sabem onde ficam. Vou ter gastrite de tanta culpa, mas meu salário será maior do que o deles. Vou ter ataque de pânico a cada reunião importante, a cada convite respeitáve­l, a cada vez que meu nome aparecer destacado.

Quando lançar livros, talvez eu tenha uma daquelas diarreias que me enterram no banheiro: “Quem sou eu pra escrever se nessa família ninguém liga pra literatura?”. Quando falar em público, vou gaguejar, colar a língua no céu da boca, perfumar o ambiente com meu bafo nervoso, me desdizer feito uma louca com problemas cognitivos, caçar a ira dos que estão certos, apenas pelo prazer de me ridiculari­zar. Apenas pelo conforto de seguir sendo aquela que é de onde veio. Mas irei.

Unhando a palma das mãos, gastando meio tubo de corretivo de olheiras no cansaço estético das minhas penitência­s, com o psiquiatra online no WhatsApp, com o pavor de ser descoberta em minha essência: uma garota tola sem berço erudito que, certa feita, ao se perder na Celso Garcia tentando achar o endereço de uma costureira, levou no rosto uma escarrada de mendigo. Contudo, estarei lá, esperando que uma hora eu possa, de fato, estar lá.

Eu serei mais feliz no amor, eu terei filhos mais felizes no amor. Eu terei dentes melhores e produzirei menos sintomas físicos, posto que luto, em muitas sessões semanais de terapia, para não ser mais uma na parentela a sentir as tantas dores das palavras não ditas, dos ensejos não vividos, dos horizontes embaçados.

Eu lerei mais livros, verei mais filmes, celebrarei mais amigos, reservarei mais quartos de hotéis com vista para uma boa vida.

Desculpem, pai, mãe, avós, bisavós, marido, vidas passadas —ainda que na merda as pessoas mereçam mais compaixão e companhia, deitarei na grama de parques em Berlim, em Londres, nos jardins de minhas casas. Eu estou cansada do meu superego gritando: “Se eles não tiveram, você não pode ter”. Estou cansada das minhas idades mais imberbes agarradas aos antepassad­os e suas limitações. Com medo do deslocamen­to, do compriment­o dos fios, da solidão de não mais pertencer a uma festa quentinha chamada “tá bom mesmo não tando”.

Querido sargento de desgraças que me sopra pavores, vá para o inferno. Aqui vai ser alegria a partir de hoje. Aqui vai ser tristeza com alegria, a partir de hoje. Aqui vai ser tristeza com uma forte tentativa de alegria, a partir de hoje.

Minhas costas não carregarão o peso de cada tio de vigésimo grau que não pode fazer. Minha nuca não latejará o vazio da mente de cada tia de trigésimo grau que não pode sentir. Os cantinhos das minhas unhas não serão mais devorados pela apetência que eu também gostaria que estivesse escondida no peito dos jovens deitados no sofá às 15h de uma quarta-feira.

Eu quero entrar num avião sem achar que ele vai cair porque meus protetores viajaram pouco. Eu quero guardar dinheiro sem achar que ele vai desaparece­r porque meus cuidadores guardaram pouco. Eu quero amar um homem sem achar que terei uma parada cardíaca porque meus defensores amaram pouco.

Eu quero fazer shiatsu na Luiza Sato sem antes elaborar uma lista mental de todos os parentes e amigos que precisam de empréstimo­s financeiro­s e mentais.

De hoje em diante, perdão, eu vou fazer a porra da massagem sem sair de lá pior do que cheguei. E não bastasse o desacompan­hado sucesso, ainda terei mais orgasmos que mil tataravós.

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