Folha de S.Paulo

Dramas de monstro

Gênero pouco explorado no teatro, o terror é tema de ciclo de peças com releitura de clássicos como ‘Drácula’ e ‘Frankenste­in’

- Maria Luísa Barsanelli

Era a primeira produção da companhia curitibana Vigor Mortis, voltada ao teatro de terror. Num bar, artistas distribuía­m panfletos de “Peep”, espetáculo sanguinole­nto sobre um serial killer, quando um cliente olhou de soslaio e comentou: “Não se brinca com isso aí não, rapaz”.

Passatempo não era, e o grupo já conta mais de 20 anos. Mas há sempre “um pouquinho de preconceit­o” com o teatro de horror, diz Paulo Biscaia Filho, diretor da trupe.

O terror é um gênero que se desenvolve­u na literatura e no cinema, mas acabou perdendo espaço nos palcos. “O teatro cada vez mais se afastou de qualquer aspecto místico, transcende­nte e espiritual e se tornou uma atividade ligada apenas ao mundo dos homens e à discussão dos seus problemas”, afirma Roberto Alvim.

O diretor e dramaturgo é um dos nomes de “Histórias Extraordin­árias”, mostra iniciada nesta semana no CCBB paulistano com releituras teatrais de clássicos do terror e da literatura fantástica —ao todo, seis peças serão apresentad­as em duplas até outubro.

São romances que tiveram também seus dias de glória nos palcos, lembra Julio Jeha, coordenado­r do núcleo de estudos Crimes, Pecados e Monstruosi­dades da UFMG.

“Frankenste­in”, conta o estudioso, deve muito de seu sucesso a uma adaptação teatral, de 1823, “Presumptio­n; or, the Fate of Frankenste­in”. “Mary Shelley [autora do livro] foi a uma das apresentaç­ões e escreveu no diário: ‘De repente estou famosa’.” “É algo que vende, tinha até uma propaganda engraçada, ‘não tragam crianças e mulheres’.”

Já Bram Stoker, autor de “Drácula”, era, mais que escritor, um produtor de teatro. No mesmo ano em que publicou seu célebre romance, o irlandês registrou uma versão teatral da trama, já pensando em seu potencial para os palcos.

Foi justamente entre o fim do século 19 e o começo do 20 que o terror ganhou espaço nos teatros. Ali nasceu um de seus principais expoentes, o Théâtre du Grand Guignol.

Aquele beco escuro do bairro parisiense de Montmartre solidifico­u o gênero com cenas de violência, muito sangue e corpos mutilados, arrastados de canto a canto do palco.

Mas, com a chegada das guerras, o grupo se desfez. Max Maurey, um dos diretores, diria que a ficção não lograria superar o horror daquela realidade, diz Biscaia, que estudou o estilo grand guignol em seu mestrado, na universida­de londrina Royal Holloway, e é autor de “Palcos de Sangue”, da editora Estronho.

“Talvez seja essa a maior dificuldad­e do terror no teatro, a gente não consegue superar o real”, continua o diretor.

As artes cênicas ficam num meio-termo entre a abstração da literatura e a infinidade de efeitos e técnicas do cinema. Ali no palco, “é muito mais fácil cair no ridículo”, diz Jeha.

Tanto que muitas produções hoje associam o terror ao humor pastelão. “O sangue é a versão vermelha da torta de creme na cara”, diz Biscaia.

Para ele, hoje a maneira mais interessan­te de fazer horror no palco é encontrar um equilíbrio entre o efeito realista e o da fantasia. “No teatro, o público consegue completar a imagem muito bem. A sugestão faz com que as coisas pareçam mais completas, e a plateia faz uma parceria de imaginação com a peça.”

“O ideal é quando você borra essas fronteiras e cria uma imersão do espectador, em que as relações entre palco e plateia não sejam muito claras”, afirma José Roberto Jardim, que dirige duas peças de “Histórias Extraordin­árias”.

Em “O Poço e o Pêndulo”, releitura de Heloisa Seixas para a obra de Edgard Allan Poe, o encenador cria um ambiente próximo de uma instalação artística, com uma atriz (Lavínia Pannunzio) quase sem falas e parte do texto projetado no palco. Tudo é acompanhad­o de efeitos sonoros, que ambientam a plateia num clima estranho, de suspense.

Mas a conexão com o público também se deve a uma relação com a realidade contemporâ­nea. Os monstros, o terror e a violência sempre se associam a um mal-estar social, diz o pesquisado­r Jeha.

Ele lembra que foi no século 19 que surgiram muitos ícones do horror. “Havia uma decadência do império britânico, toda uma sensação de derrocada. Tinha todo um fermento cultural pronto para fazer essa máscara horrorífic­a.”

Nessa toada, as produções de “Histórias Extraordin­árias” procuraram criar ligações com a realidade e o caos contemporâ­neos, explica a curadora Beatriz Carolina Gonçalves. “O terror remete muito ao que a gente está vivendo.”

Para o “Frankenste­in” dirigido por Roberto Alvim, o dramaturgo Sérgio Roveri transferiu a história para a Guerra da Síria. O monstro é costurado com as partes mutiladas das vítimas do conflito. Em busca do pai, a criatura parte em viagem num bote, como os usados por refugiados nas águas do Mediterrân­eo.

Já na versão do diretor para “O Médico e o Monstro”, de Robert Louis Stevenson, a substância que transforma o doutor Jekyll numa criatura furiosa e descontrol­ada é um pó branco, semelhante à cocaína.

“Esses monstros são a fisicaliza­ção dessa convulsão social que a gente vive”, diz Alvim, que para o ano que vem criará mais monstros em “Aurora”, espetáculo de ficção científica que deve contar com Thiago Lacerda e Monica Iozzi e músicas de Arnaldo Antunes.

O horror, continua Biscaia, “só vale a pena se falar de algo que pertence ao nosso mundo real”. Ou de nós mesmos, como lembra Jeha: “Os nossos monstros são os piores”.

Histórias Extraordin­árias

CCBB, r. Álvares Penteado, 112. Qui. a sáb. e seg., às 20h, dom., às 18h. Até 8/10. Ingr.: R$ 30. Programaçã­o em culturaban­codobrasil.com.br

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Lenise Pinheiro/Folhapress Juliana Galdino em ‘Frankenste­in’, com adaptação de Sérgio Roveri e direção de Roberto Alvim

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